domingo, 1 de dezembro de 2013

“As estruturas de raciocínio lógico da Ciência e da Doutrina Espírita são equivalentes”


Doutor em Física vinculado ao Instituto de Física da USP São Carlos, o confrade goiano fala sobre os pontos de ligação existentes entre a Ciência convencional e o Espiritismo. 

Otaciro Rangel Nascimento (foto), nascido em Goiânia-GO e residente em São Carlos-SP desde 1978, é graduado em Física pela Universidade Federal de Goiás, possui Mestrado e Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e trabalhou na PUC-Rio até final de 1977. Atualmente vincula-se ao Instituto de Física da USP
São Carlos, como professor e pesquisador Senior. Espírita desde 1962, é palestrante muito conhecido e está integrado à casa espírita Obreiros do Bem, na cidade onde reside. Submetemos ao amigo uma análise sobre os temas que trazemos na presente entrevista. 

Como definir a ciência? 

A ciência é o conhecimento ou um sistema de conhecimentos que abarca verdades as mais gerais e abrangentes possíveis bem como a aplicação das leis científicas derivadas, obtidas e testadas através do método científico. Nestes termos, ciência é algo bem distinto de cientista, podendo ser definida como o conjunto que encerra em si o corpo sistematizado e cronologicamente organizado de todas as teorias científicas, bem como o método científico e todos os recursos necessários à elaboração delas. 

E como situar o cientista?

O cientista é um fator essencial à ciência, e como qualquer ser humano, dotado de um cérebro imaginativo, criativo, crítico e também com sentimentos e emoções. O cientista certamente também tem suas crenças – convicções que podem ir além da realidade tangível, podendo mesmo ser, não raramente, um religioso convicto. Ao definirem-se ciência e cientista é relevante ressaltar que em seus trabalhos científicos saiba manter suas crenças separadas de seus artigos científicos e das teorias científicas com as quais trabalha; constituindo-se estes dois elementos – ciência e cientista – certamente muito distintos.

Como vincular os esforços da ciência, no conjunto dos conhecimentos e ativa presença dos cientistas, diante da realidade de tantas divergências de interpretações e visão dos fatos?

O cientista, quando elabora um trabalho científico, só consegue sua publicação depois de ter seu trabalho analisado e criticado por dois, três ou mais cientistas da área de seu conhecimento e recebido deles opinião unânime da boa qualidade de seu trabalho. Desta maneira as divergências nos trabalhos científicos são minimizadas. Entretanto, quando algum resultado é apresentado como surpreendente, provoca debates acirrados na comunidade científica até que todos os aspectos referentes ao tema sejam de aceitação geral pela comunidade científica. Para isto são realizados os congressos internacionais de Ciência em cada uma de suas áreas de atuação com frequência anual, bianual ou maior período. Por esta razão a Ciência se desenvolve de uma maneira relativamente harmônica.

Como ficamos com a ciência diante da revelação espírita?

Neste sentido diríamos que o escopo ou paradigma da Ciência é ainda a Matéria e não o Espírito. Sendo assim, não podemos esperar a palavra da Ciência em favor da realidade espiritual e muito menos da Revelação Espírita. No entanto do ponto de vista do Cientista já encontramos muitos esforços no sentido de trabalhar a hipótese do Espírito em algumas áreas do conhecimento científico, como a Neurociência. É um ponto de curiosidade científica se a consciência está no cérebro ou fora dele. Se o pensamento é uma forma de energia que se transmite entre mentes e ou cérebros. Se as possibilidades paranormais justificam ou não a existência do espírito como independente da matéria. De minha parte tenho certeza que estas iniciativas científicas vão abrir as portas da realidade espiritual e o pensamento científico se ocupará delas em futuro muito próximo. 
      
E como situar a revelação espírita perante a ciência?

No estudo da Revelação Espírita entendemos claramente a intenção do Mundo Espiritual, em face do adiantamento da humanidade terrena, que ela, a Revelação Espírita, veio no momento certo para convidar as almas mais preparadas para antecipar e trabalhar a concepção humana na direção da realidade espiritual até então esquecida pelo homem sensorial. De fato ela é uma Revelação Espiritual partida do Mundo Espiritual e que contou com o trabalho de homens maduros e sérios que cultivavam o conhecimento científico na época de seu surgimento, e que, por isto mesmo, perceberam a sua lógica racional e a veracidade dos fatos hoje conhecidos como mediúnicos, como autênticos e verdadeiros. É de se salientar a presença do Professor Rivail, ou senhor Allan Kardec, como a mente lúcida e o sentimento equilibrado que pôde sistematizar as informações espirituais que lhe chegaram por diferentes médiuns e grupos estudiosos e dar um corpo doutrinário a estas informações de uma forma didática e logicamente estruturada. Por esta razão ele é o Codificador da Doutrina Espírita e uma regra importante que ele usou anda meio esquecida pelos continuadores espíritas de nossa época que é: Uma informação nova só pode ser incorporada à Doutrina Espírita se ela passar pelo caráter da universalidade dos ensinos dos Espíritos. A Ciência, enquanto não incorporar em seu paradigma a possibilidade do Espírito, não se ocupará da Revelação Espírita, mas cresce o número dos cientistas que se ocupam com a realidade espiritual.

Que pensar sobre a opinião de um pesquisador de qualquer área da ciência perante os conhecimentos que gradativamente se acumulam na humanidade, inclusive a revelação espírita, face à diversidade de entendimento e amadurecimento de cada um? Especialmente se considerarmos os hábitos, crenças e condicionamentos humanos?

É importante neste aspecto não perder de vista que a opinião de uma pessoa, seja ela cientista ou não, não passa de uma opinião pessoal que, para ser considerada, precisa ser analisada com critérios da lógica e da sua inclusão dentro de outras opiniões que a corroborem como digna de ser levada a sério. Senão incorreremos na formação de correntes de pensamentos que não se suportam a si mesmos, mas que são capazes de angariar apoio de pessoas menos cautelosas e criar com isto desenganos que podem levar ao sofrimento muitas pessoas. Hoje com a internet isto tem acontecido com muita intensidade, pois que muitas pessoas acham que se está na internet é verdade. Veja por exemplo o ocorrido recentemente com as interpretações errôneas do calendário Maia. Para evitar tais acontecimentos, busquemos conhecer com mais profundidade os indivíduos que se apresentam como pesquisadores e atentemos para a seriedade de suas opiniões.

Em sua opinião, qual a maior contribuição do Espiritismo para a Ciência no geral?

Como disse anteriormente, a Doutrina dos Espíritos codificada por Allan Kardec veio abrir portas para uma realidade esquecida pelo homem de Ciência e para os desenganados das religiões, convidando o homem sério a buscar o conhecimento da realidade Espiritual. Assim como a Ciência delineia as Leis do mundo sensorial para o nosso conforto material transitório, a Doutrina Espírita delineia as Leis Espirituais para o nosso conforto interior como seres espirituais permanentes. Ela nos ajuda a compreender os verdadeiros objetivos da Ciência e da própria vida terrena.

Quais os principais pontos de ligação entre a ciência convencional, com suas pesquisas e busca do entendimento dos fatos na formulação de leis e princípios, e o Espiritismo?

Já o disse anteriormente. Os pontos de ligação estão justamente nos métodos de análises utilizados por ambas. A Doutrina Espírita é uma ciência de observação e como tal não podemos ter domínio sobre os fatos, pois que os Espíritos têm vontade própria e não se submetem ao mando do cientista. Neste sentido ele é parecido com a Astronomia cujos fatos são observados, mas não realizados em laboratório, como outras áreas da Ciência material. 

Há algo marcante em suas reflexões pessoais que gostaria de relatar?

Gostaria de deixar claro aqui minha opinião como cientista e espírita. O estudo da Ciência e da Doutrina Espírita para mim são recursos educadores de minha alma. As estruturas de raciocínio lógico da Ciência e da Doutrina Espírita são equivalentes, e o entendimento de uma e outra me ajuda a viver com mais equilíbrio e serenidade. Saber-se imortal e saber que aprenderei sempre é uma grande felicidade. 

Qual sua visão acerca do panorama atual de conhecimentos humanos frente ao avanço do pensamento espírita?

O panorama atual da humanidade é de conflito entre o egoísmo individual e coletivo com os anseios de um mundo mais justo e generoso. A Humanidade está internamente dividida entre o sofrimento de muitos e a vantagem de poucos. A Ciência e a tecnologia facilitam a vida do homem, mas os homens dificultam a vida uns dos outros por falta de uma visão de solidariedade e amor. Aquele lema da Revolução Francesa de mais de duzentos anos – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – não aconteceu ainda entre os homens. Todos ansiamos por este lema, mas não sabemos executá-lo por falta da convicção da nossa realidade espiritual permanente e evolutiva. Neste sentido só a Doutrina Espírita pode solucionar este conflito. Por esta razão estão certos os Espíritos: a prática e divulgação da Doutrina Espírita é a maior caridade que podemos fazer neste momento de transição. 

Algo mais que gostaria de acrescentar?

Estou feliz por poder dizer àqueles que nos leem que podemos juntos mudar o mundo para melhor, começando por mudar a nós mesmos, já que não podemos dar aquilo que ainda não temos. Unamo-nos em torno de um ideal comum que é nos tornarmos uma única família sob a égide de um mesmo patrono que para mim representa o modelo de homem ideal: Jesus.

Matéria extraída da Revista Eletrônica: O consolador

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Kardec, a biografia – um livro bom de se ler


Não direi que o livro Kardec: a biografia é uma grata surpresa, porque quem escreveu a melhor biografia de Chico Xavier, até hoje, prometia escrever também a melhor do mestre de Chico e de milhões de espíritas brasileiros: Allan Kardec. 
Por que considero ambas excelentes biografias? Porque são biografias mesmo e não hagiografias. (Para quem não sabe, hagiografia é história de santo, escrita dentro dos cânones da Igreja Católica). Marcel Souto Maior conta a história de um ser humano. De um grande ser humano, mas um ser humano. Um homem de bem, que é o que O Evangelho segundo o Espiritismo propõe como padrão ético. E conta muito bem contado. 
Seu estilo é leve, sem cair na banalidade. É espirituoso e às vezes oportunamente irreverente, justo para não assumir um tom laudatório demais, o que acabaria com a sua credibilidade de biógrafo e jornalista investigativo. É um texto saboroso, ágil e que nos dá vontade de ler sem parar. 
Souto Maior soube tratar de um assunto delicado, sem ferir nenhum partido; de um assunto sério, sem cair numa doutrinação massacrante e antipática. 
Acima de tudo, porém, é fiel aos fatos. E sendo fiel aos fatos, a grandeza do personagem se destaca naturalmente, sem a mínima necessidade de usar uma batelada de elogiosos melosos. 
Aliás, o que se sobressai na biografia escrita por Souto Maior é o Kardec da Revista Espírita. Quem está familiarizado com os 12 volumes da Revista, conhece melhor a personalidade de Kardec, seus embates, seu contexto, seus diálogos e discussões com adversários e aliados, com admiradores e detratores. O autor soube compor não só a partir da Revista, mas de outros documentos, um mosaico bem montado de Kardec, seu trabalho e sua época, que nos permite nos sentirmos lá, na França do século XIX. 
É claro que para alguns puristas, que prefeririam uma hagiografia, o fato de Kardec na biografia se irritar, se cansar, se alegrar e usar de uma fina ironia (e usava mesmo com todo o requinte do esprit francês) pode parecer algo humano demais. Mas grandes homens também se irritam e se cansam. Com essa constatação óbvia, em absolutamente nada sai arranhada a personalidade de Kardec e o que ele propôs como Espiritismo. 
É claro que não se trata de uma obra filosófica e por isso não discute a fundo alguns pontos que poderiam ser polêmicos e assim não é um livro que sai dos cânones do Espiritismo brasileiro atual. Mas a postura crítica, racional e vigilante que Kardec tinha em relação à mediunidade é muito bem retratada e, mesmo sem querer, serve de alerta para esse movimento, que perde muitas vezes qualquer critério de análise do que supostamente vem do Além. 
Quando me refiro aos cânones do Espiritismo brasileiro atual, estou falando de coisas que já estão assentadas entre nós e não me parecem que sejam tão fiéis a Kardec. Por exemplo, o termo “codificador”, que tenho criticado e que não aparece em nenhuma obra da Kardec. Aparentemente, trata-se de algo criado aqui no Brasil e que ressalta o caráter do mestre como mero organizador de uma revelação pronta ou mero secretário dos Espíritos. Tenho pontuado que, apesar de sua modéstia, o próprio Kardec reconhecia em si mesmo um papel mais ativo e criativo nessa relação com os Espíritos. Diz ele em Obras Póstumas:

“Conduzi-me, pois, com os Espíritos, como houvera feito com os homens. Para mim, eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados.”

E na Gênese:

“O homem concorre para a revelação com o seu raciocínio e o seu critério; desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no caminho das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos. Ora, as manifestações (...) são fatos que o homem estuda para lhes deduzir a lei, auxiliado nesse trabalho por Espíritos de todas as categorias, que, de tal modo, são mais colaboradores seus do que reveladores, no sentido usual do termo.”

Ou seja, como estudei em minha tese de doutorado na USP, que virou depois o livro Pedagogia Espírita, um projeto brasileiro e suas raízes, Kardec criou um novo paradigma para conhecermos o mundo, que inclui uma dimensão espiritual. E esse método de estudar os fenômenos que evidenciam a imortalidade de alma é algo criado por Kardec e não pelos Espíritos. O livro de Souto Maior não desmente isso, aliás chega perto de demonstrar através de sua narrativa essa proposição que fiz. Mas não é seu objetivo, e nem poderia ser, discutir altas questões epistemológicas. 
Um único reparo histórico que tenho a fazer no livro, um descuido talvez: Victor Hugo, quando se interessou pelas mesas girantes e manteve diálogos com os Espíritos, inclusive o de sua filha, não estava em Paris, como afirma Marcel. O grande escritor francês estava exilado na ilha de Guernsey, por conta de sua oposição ao governo de Napoleão III, que ele chamava de Napoléon, le petit (Napoleão, o pequeno). 

Gostei particularmente dos dois últimos capítulos do livro, que estão muito bem articulados. O penúltimo trata do processo dos espíritas (aliás, num erro de digitação ou num engano de tradução aparece como “processo dos espíritos”), em que o juiz Millet destrata Amélie, já idosa, e lança de uma ironia agressiva e injusta contra a personalidade de Kardec. E Souto Maior nada responde. Mas insere no último capítulo a resposta final: um texto do mestre, que considero um dos mais bonitos, porque revela algo de sua intimidade e que só apareceu em Obras Póstumas, em que ele descreve a si mesmo, fazendo um balanço de sua vida de homem de bem. Essa é a melhor resposta para o Juiz furioso e para todos aqueles que ainda denigrem Kardec. Um texto em que o mestre se analisa com toda a simplicidade como um pessoa interessada em fazer o bem e promover a felicidade alheia.

Dora Incontri 

Imagem é do livro