domingo, 30 de agosto de 2015

Além da morte


Os Espíritos não vacilam quando se referem às mudanças de um plano a outro, através da morte. Contudo, há os que ainda acreditam na transformação, nesse instante especial dos que passam para o outro lado, em figura angelical; em anjo, na verdade. 
Essa é a mudança esperada, a mudança que gostariam que acontecesse e que fica no coração daqueles que sentem a partida do ente querido, considerando-o, sempre, como figura benfazeja, bondosa, de sentimento generoso, merecedor do maior respeito. E é verdade! Se foram bons, continuarão bons e a desenvolver o que está latente na alma. Lá, serão recepcionados igualmente pelos bons; se perversos, é natural que os que se identifiquem com eles façam a recepção. A mudança de ambiente não promoverá as alterações imaginadas, da mesma maneira que a transferência de uma cidade ou de um país para outro não trará mudanças na personalidade do indivíduo. Haverá variação, sim, e muita, no aspecto ambiental. Mas, quanto ao comportamento, este sofrerá as alterações de acordo com o interesse demonstrado, da mesma maneira como aqui na Terra. Sem a presença da boa vontade, não mudaremos nada.

Através da psicografia de Chico Xavier, seu mentor Emmanuel ilustra o que representa a passagem deste lado para o outro:

“O reino da vida, além da morte, não é domicílio do milagre.

Passa o corpo, em trânsito para a natureza inferior que lhe atrai os componentes, entretanto, a alma continua na posição evolutiva em que se encontra.

Cada inteligência apenas consegue alcançar a periferia do círculo de valores e imagens dos quais se faz o centro gerador.

Ninguém pode viver em situação que ainda não concebe.

Dentro da nossa capacidade de reconhecimento, erguem-se os nossos limites.

Em suma, cada ser apenas atinge a vida, até onde possa chegar a onda do pensamento que lhe é próprio.

A mente primitivista de um primata, de um gorila, por exemplo, transposto o limiar da morte, continua presa aos interesses da furna que lhe consolidou os hábitos instintivos.

O índio desencarnado dificilmente ultrapassa o âmbito da floresta que lhe acariciou a existência.

Assim também, na vastíssima fauna social das nações, cada criatura dita civilizada, além do sepulcro, circunscreve-se ao círculo das concepções que, mentalmente, pode abranger.

A residência da alma permanece situada no manancial de seus próprios pensamentos.

Estamos naturalmente ligados às nossas criações.

Demoramo-nos onde supomos o centro de nossos interesses.

Facilmente explicável, assim, a continuidade dos nossos hábitos e tendências, além da morte.

A escravidão ou a liberdade residem no íntimo de nosso próprio ser.

Corre a fonte, sob a emanação de vapores da sua própria corrente.

Vive a árvore rodeada pelos fluidos sutis que ela mesma exterioriza, através das folhas e das resinas que lhe pendem dos galhos e do tronco.

Permanece o charco debaixo da atmosfera carregada de impurezas que ele mesmo alimenta, e brilha o jardim, sob as vagas do perfume que produz.

Assim também a Terra, com o seu corpo em constante transformação, arrasta consigo, na infinita paisagem cósmica, o ambiente espiritual de seus filhos”.

Não resta dúvida alguma sobre a importância do nosso comportamento no curso da vida. Chico Xavier já lembrava, e com muita propriedade, que não havia necessidade alguma de se recorrer ao processo chamado "TVP" - Terapia de Vidas Passadas - ao qual não se dizia favorável, para conhecer os motivos determinantes que culminam no cumprimento da Grande Lei, trazendo para os dias atuais sofrimentos muitas vezes não compreendidos, como convém. Basta, isso sim, que olhemos para nosso próprio interior para avaliar os gostos que temos, pensamentos que nos ocupam, palavras ou frases que dizemos, pontos de vista que colocamos, reações e decisões dominantes e comportamento social rotineiro, especialmente no ambiente do lar. Por aí já se terá uma imagem, senão precisa, pelo menos delineada o suficiente para avaliar o que fomos e o que fizemos. 
O que não pode e nem deve ser esquecido é que sempre haverá um dia determinante para a nossa transformação. E como nada impede que esse importante marco divisor de nossas águas entre o ontem e o hoje seja o momento de agora, por que vacilar? 
Reflitamos, com Emmanuel: “A bendita renovação da alma pertence àqueles que ouviram os ensinamentos do Mestre Divino, exercitando-lhes a prática”; com André Luiz: “A morte física não significa renovação para quem não procurou renovar-se”, e com Miguel Couto: “A vida pede a nossa renovação permanente para chegarmos ao Sólio Divino, que lhe é meta fulgurante”. O que estamos esperando?

Vladimir Polízio
polizio@terra.com.br
Jundiaí, SP (Brasil)



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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A palavra “reencarnação” foi também criada por Allan Kardec?


Um leitor pergunta-nos se a palavra “reencarnação” foi também criada por Allan Kardec, tal como ocorreu com os vocábulos perispírito, espírita e Espiritismo. 
Não, a palavra reencarnação já existia quando Kardec deu início à tarefa de codificação dos ensinamentos espíritas. 
É bom lembrar que, conforme diz Gabriel Delanne em seu livro “A Reencarnação”, essa palavra é também chamada Palingenesia – termo formado por duas palavras gregas: palin, de novo; genesis, nascimento – e desde os albores da Civilização fora formulada na Índia. 
O livro dos Vedas (Bagavat Gitá) afirma textualmente: "Assim como se deixam as vestes gastas para usar vestes novas, também a alma deixa o corpo usado para revestir novos corpos". 
Ainda segundo Delanne, foi Pitágoras quem introduziu na Grécia a doutrina das vidas sucessivas, que ele aprendera no Egito e na Pérsia, ideia essa que teria sido adotada por Platão, autor de conhecida frase: “Aprender é recordar". 
Foi entre os séculos XVI e XVIII que surgiu, no Latim tardio, o termo erudito e acadêmico reincarnatio, reincarnationis, que, em seguida, passou para as línguas românicas e para o inglês. Em francês é "réincarnation". Essa informação pode ser conferida acessando-se o site http://www.latin-dictionary.net/definition/33192/reincarnatio-reincarnationis
Ora, a codificação do Espiritismo teve início em meados do século XIX, mais precisamente a partir de 1855, quando o professor Rivail teve o primeiro contato com os fenômenos espíritas e passou a estudá-los de forma metódica, do que resultou aquilo que chamamos de codificação da doutrina espírita.
A ideia de reencarnação e o termo que a expressava existiam, portanto, havia muito tempo, e antes mesmo de Kardec ter vindo ao mundo.

Astolfo O. de Oliveira Filho
Londrina, Paraná (Brasil)


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sábado, 22 de agosto de 2015

Quando foi que esquecemos?


Eis um texto que precisa ser lido em horário nobre na TV. Transcrevo na íntegra porque é algo que merece ser lido, precisa ser divulgado e mesmo comentado em família:

“Em entrevista, uma jovem contou que tinha uns sete anos quando foi com sua mãe ao mercadinho perto de casa. Enquanto a mãe fazia as compras, ela, menina, escondeu um doce de leite no bolso.
Na saída, sentindo-se a garota mais esperta do mundo, mostrou o doce e disse: Olha, peguei sem pagar.
O que ela recebeu de retorno foi um olhar severo. E, logo, a mãe a tomou pela mão, retornou ao mercado, fê-la devolver o que pegara e pedir desculpas.
A garota chorou demais. Sentiu-se morrer de vergonha. Entretanto, arrematou, concluindo: Isso me ensinou o valor da honestidade.

É possível que vários de nós tenhamos tido experiência semelhante. Por isso, indagamos: Quando foi que deletamos a mensagem materna? O que nos fez esquecer o ensino da infância?
A infância é o período em que o Espírito, reencarnado em nova roupagem corpórea, se apresenta maleável à reconstrução do seu eu.
É o período em que as falas dos pais têm peso porque, afinal, eles sabem tudo.
Mirar-se no exemplo dos pais é comum, considerando que, no processo de educação, os exemplos falam muito mais alto do que as palavras.
Por que, então, deixamos para trás as lições nobres? Quantos de nós, ainda, tivemos professores que iam muito além do dever e que insistiam para que fôssemos responsáveis, corretos?
Criaturas que se devotavam, ensinando com o próprio exemplo, as lições da gentileza no trato, a hombridade, o valor da palavra empenhada.
Se todos nós viemos de um lar, o que nos fez desprezar a honra, a honestidade e tantos de nós nos transformarmos em políticos corruptos, em maus profissionais, em seres que somente pensam em si mesmos?
Hora de evocar lembranças, de retornar aos anos do lar paterno e permitir-nos a reprise das lições.
Não pegue nada que não lhe pertença.
Se achar um objeto, procure o dono porque ele deve estar sentindo falta dele.
Respeite o seu semelhante, o seu espaço, a sua propriedade.
Os bens públicos são do povo e todos devem ser com eles beneficiados. A ninguém cabe tomar para si o que deve ser bem geral.
Digno é o trabalhador do seu salário.
Respeite a servidora doméstica, o carteiro, o lixeiro. São valorosos contribuintes das nossas vidas.
Lembre de agradecer com palavras e delicados mimos extemporâneos o trabalho diligente dessas mãos.
Cumprimente as pessoas. Sorria. Ceda seu lugar, no coletivo, ao idoso, ao portador de necessidades especiais, à grávida, a quem carrega pequenos nos braços.
Ceda a vez no trânsito, aguarde um segundo a mais o pedestre concluir a travessia, antes de arrancar com velocidade, somente porque o sinal abriu.
As leis são criadas para que, obedecendo-as, vivamos melhor em sociedade.
Mas gentileza não está normatizada.

Honestidade é virtude de quem respeita a si mesmo, ao outro, ao mundo.
Pensemos nisso. Façamos um retorno à infância, pelos dias dos bancos escolares, lembremos dos nossos pais, dos mestres, das suas exortações.
E refaçamos o passo. O mundo do amanhã aguarda nossa correta ação, agora, ainda hoje.”

Extraído na íntegra do site www.momento.com.br , com com citação de narrativa do artigo Como nossos pais, de Jaqueline Li, Jéssica Martineli, Rafaela Carvalho  e Rita Loiola, da revista Sorria, de outubro/novembro/2012, ed. MOL..

Orson Peter Carrara

Fonte: http://orsonpetercarrara.blogspot.com.br/2015/08/quando-foi-que-esquecemos.html

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terça-feira, 18 de agosto de 2015

A reencarnação e o medo à liberdade


Recentemente, folheei um romance espírita, desses cujos dramas se ancoram no relato de épocas diferentes: a do passado, uma descrição detalhada de vidas aquinhoadas de beleza, fortuna e poder; e a atual, em situação oposta, com as personagens amargurando reveses sem conta. Esses romances certamente contribuem na difusão da ideia reencarnacionista, porém, frequentemente, induzem a crenças equivocadas, fortalecendo a noção de que Deus dela se utiliza como instrumento punitivo-corretivo. Embora existam estudos histórico-filosóficos e relatos de pesquisas sobre a reencarnação, não pude deixar de refletir sobre a necessidade de abordá-la, por exemplo, em uma perspectiva sociopsicológica. É essa visão que será considerada neste artigo.
Como definir a reencarnação? Simplificando, mas sem esquecer Kardec[1], podemos dizer que a reencarnação supõe um mecanismo de sucessivas existências do Espírito, ao longo dos séculos, até o alcance de condição espiritual que dispensaria o seu retorno, salvo em caráter de missão voluntária. A noção de reencarnação é bastante antiga em várias culturas. Por exemplo, vamos encontrá-la nos livros dos Vedas, no Hinduísmo, no Judaísmo, entre os egípcios e em muitos filósofos gregos, como Pitágoras, Sócrates e Platão[2] e, mais recentemente, em relatos de pesquisa[3].

As premissas da ideia reencarnacionista

A ideia da reencarnação se apoia em duas premissas: (a) que a alma é imortal e (b) que a alma progride continuamente. No Cristianismo, a noção de uma única vida também se baseia na imortalidade; contudo a condição evolutiva pessoal já vem definida desde o nascimento e para sempre. Ambos os dogmas, da reencarnação e da unicidade da existência, explicam a destinação final do Espírito, ou da alma. No primeiro caso, trata-se de um progresso contínuo, com diferentes experiências e aquisições. No segundo caso, a alma pode ser destinada às bem-aventuranças (céu), à situação de sofrimento relativo (purgatório) e à pena eterna (inferno). Por que o Cristianismo adotou a doutrina de uma única vida? Quais os conceitos subjacentes a essas doutrinas? São questões discutidas adiante. 
Iniciamos por refletir sobre a difusão dessas doutrinas no tempo. Se a ideia reencarnacionista já estava presente no mundo, muitos séculos bem antes do surgimento do movimento cristão e até prevalecesse em algumas culturas, é razoável pensar que ela tenha, de algum modo, feito parte do modo de entender o mundo pelos pensadores da Igreja nascente. Recordemos que o Cristianismo nasceu na cultura judaica, cuja população, em geral, tinha uma noção vaga sobre a reencarnação, o que, entretanto, não acontecia na esfera do rabinato[4], salvo exceções. 

O Judaísmo ante a influência externa

Além disso, o Judaísmo nunca foi um sistema verdadeiramente fechado e, em vários momentos históricos, foi bastante permeável à influência de outras culturas. Mesmo durante a fuga do Egito que, aparentemente, deveria fortalecer uma cultura judaica, havia a preocupação constante das lideranças em relação “aos desvios” religiosos do povo. E isto se deu, inclusive, algumas horas antes de Moisés aparecer com as “Pedras da Lei” (ver Êxodo, 32, 4-9). O mesmo ocorreu durante o período de dominação na Babilônia, de onde os judeus trouxeram o código de lei da reciprocidade entre crime-castigo (“olho por olho...”). Fato semelhante se repetiu durante a ocupação romana, quando o Sinédrio age com tolerância à pena de morte por crucificação. Considerando, por outro lado, que as lideranças do Caminho se esforçavam por manter uma relação amistosa com as autoridades do país, pode-se pensar que, durante algum tempo, o Cristianismo nascente conviveu com duas alternativas doutrinárias, a da existência única e a de múltiplas existências, reproduzindo, de certa maneira, a cultura judaica. 
Qualquer uma das duas poderia ter prevalecido? Supõe-se que houve aceitação, durante algum tempo, da doutrina reencarnacionista e que a imperatriz Teodora tenha influenciado o Imperador Justiniano (527-565 d.C.) para eliminar da Igreja essa crença. No entanto, a história não acontece por acidentes ou caprichos individuais, sem que haja uma ideologia subjacente a lhe dar sustentação. 

Justiniano e a divinização de Jesus

Nesse sentido, essa suposição sobre a influência da imperatriz pode ser apenas parte da verdade. Por um lado, Teodora[5] era movida pela ambição obsessiva de que Justiniano expandisse seu domínio sobre todo o Mediterrâneo oriental. Essa era sua maior preocupação. Por outro lado, o imperador sentia uma grande motivação por questões teológicas, o que não era do interesse de Teodora. Historicamente, foi Justiniano o principal articulador da divinização de Jesus pela Igreja. Adicionalmente, a noção de uma única vida iria favorecer o poder do clero sobre os fiéis e, consequentemente, a maior entrada de recursos. Na visão de Justiniano, tal estratégia aumentaria o seu controle sobre os bens da Igreja, facilitando o uso do pecúlio para as campanhas de conquistas. Seu lema “Um Estado, uma lei, uma igreja” representa a síntese dessa visão e explica seu empenho na convocação de concílios e ditames teológicos. Portanto, a noção da reencarnação foi excluída, menos por imposição de Teodora e mais por estratégia política. Justiniano faleceu no ano de 565 (d.C.) e, mesmo com o império em decadência, a Igreja continuou a aumentar sua riqueza e seu  poder. 
A perspectiva espiritualista no mundo é anterior à materialista. Ainda que já existissem ateístas desde a época anterior a Jesus, as ideias filosóficas materialistas ganharam destaque com os pré-socráticos, como Demócrito, Leucipo e Epicuro. Contudo, o materialismo, enquanto escola filosófica, ganhou adeptos e status a partir do século XVI, com Leibniz[6]. 

O Reino de Deus está dentro de cada um?

Não há dúvida de que, até o início da Idade Média, era mais fácil aceitar a noção de Deus e da imortalidade da alma, do que uma visão materialista oposta. E isso, por um lado, devido à dificuldade de entendimento dos processos de nascimento e morte e, por outro, pelo fato de as leis que regem o Universo serem ininteligíveis, mesmo para a grande maioria dos pensadores. Além disso, sob essas crenças vicejavam templos e organizações sacerdotais, cujo poder ultrapassava o âmbito da religiosidade. A intimidade com um Criador, que concedia aos sacerdotes a decisão sobre quem deveria ser salvo, fortalecia o poder religioso e criava uma cultura de submissão e medo. A ideia de Jesus de que o Reino de Deus está dentro de cada um, podendo ser implantado no mundo, e não alhures, foi reinterpretada na perspectiva de um julgamento futuro. O resultado favorável, em tal julgamento, dependia da fidelidade aos dogmas e da mediação clerical, o que exigia poucos esforços de todos, fiéis e sacerdotes. A reencarnação, como um processo, já não tinha a mínima condição de aceitação, e a doutrina da única existência estava, pois, consolidada de acordo com a noção de um Jesus “Salvador”. Como que referendando essa posição, disseminou-se, também, a doutrina da mediação pelos santos, ou por Maria, dubiamente alçada à posição de mãe do próprio Deus.

Salvacionismo versus Evolucionismo

Pode-se inferir, portanto, que as doutrinas de única existência e de pluralidade das existências têm como base dois paradigmas culturais diferenciados. O primeiro, mais antigo, pode ser denominado de Salvacionismo. O segundo, que se opõe à noção salvacionista, pode ser chamado de Evolucionismo. Paradigmas culturais são conjuntos de ideias e normas que orientam crenças, valores, sentimentos e comportamentos. Um paradigma só entra em declínio quando outro responde, com melhor propriedade, às dúvidas e questões presentes. Ao longo de sua jornada no planeta, o homem criou mitos e crenças que, de alguma maneira, lhe explicavam o Universo, acalmavam suas dúvidas sobre problemas de difícil compreensão e abrandavam seus medos e angústias. 
Várias emoções humanas atuam no sentido da sobrevivência e da evolução. Entretanto, o medo está relacionado à conservação, sendo o elemento base do paradigma salvacionista, onde o medo é acentuado e prevalece à busca da segurança, via proteção de um poder maior. A renúncia ao poder de pensar e decidir favorece a prática da submissão e da adulação aos mais fortes. A história da saga humana evidencia que o líder, para se fortalecer, incentiva a adulação a si e aos ídolos, que passam a representá-lo. Alguns dos ídolos primitivos foram idealizados como figuras bizarras, que despertavam temores inconscientes, mas uma vez subornados por rituais, se transformariam em protetores. Enfim, um poder com o qual o homem poderia contar, contra as forças destrutivas ignoradas. 

Com o salvacionismo o poder do clero aumentou

A sedução e a adulação permanecem até hoje, e também o homem moderno se esforça por seduzir seus deuses ou aqueles que os representam, por exemplo, o dinheiro, a beleza, a força... Tal jogo não se restringe mais ao campo da religiosidade: é generalizado para as figuras midiáticas, a política, os negócios e as armas. E assim continuará enquanto houver prevalência do paradigma salvacionista em nossa cultura religiosa. 
Com o salvacionismo, o poder do clero sobre as consciências aumentou consideravelmente. Daí, a proibição do intercâmbio com o mundo espiritual era uma providência calculada e necessária para evitar questionamento à autoridade sacerdotal. Além de tudo, a aceitação da comunicação com os mortos poderia colocar em dúvida alguns dos dogmas estabelecidos pelos teólogos, por exemplo, o das penas eternas. 
Aproximadamente no ano 300 (d.C.) o clero já estava bastante organizado, tendo o bispado fortalecido seu poder na hierarquia da Igreja. Em consequência, o uso de privilégios principescos por parte dos bispos era aceito quase sem oposição. A subserviência interna dos frades e párocos e os conchavos e alianças do clero, em geral, com reis e imperadores se transformaram em prática comum. Portanto, a aceitação da doutrina de uma única existência, e a consequente rejeição da noção de reencarnação, não ocorreu devido ao capricho de uma imperatriz, nem foi resultante de uma opção filosófico-teológica, mas, sim, uma estratégia política, fortalecendo a ordem e o poder estabelecidos. Já no século IV, além da introdução do dogma do pecado original, se deu a conversão do Império Romano ao catolicismo. Estava, pois, estabelecida a supremacia de uma Igreja, a católica, sobre as demais e a sua cumplicidade com o poder temporal[7].

Do paradigma evolucionista advém o medo

A doutrina de uma única existência, ainda que deixasse a noção de um Criador em situação delicada, pois é indefensável em termos de lógica sobre alguns de seus atributos, favorece, e muito, o poder dos clérigos. Ao subordinar o futuro da alma ao seu controle, a Igreja desenvolveu duas ações que se complementam: o fortalecimento de sua autoridade e a compra/venda da salvação. É pouco provável que isso pudesse ter acontecido, caso a pluralidade das existências fosse aceita, como pode ser verificado, por exemplo, no Budismo. Na perspectiva evolucionista, Jesus seria aceito como um modelo evoluído, com missão educativa em relação à humanidade. Tal missão Lhe foi outorgada por Deus, seu pai e nosso pai. Ter alguém que auxilia o homem em sua caminhada evolutiva é muito diferente de ter um salvador. Do paradigma evolucionista decorre uma liberdade difícil de ser aceita, pois exige outra maneira de encarar a vida. Ela produz medo, pois o homem se vê responsável pelo seu destino presente e futuro. Quando, nesse processo, o indivíduo começa a intuir que deve se avaliar e superar sua condição espiritual presente, seu medo pode aumentar a ponto de gerar conflito entre uma ou outra posição. Entretanto, há uma fase de seu desenvolvimento da qual não consegue mais retornar aos bons tempos da crença em um Salvador. Nesse caso, ele deve enfrentar também os seus receios e precisa compreender que essa é uma experiência solitária, mas que, no entorno, ele pode contar com a solidariedade de muitos Espíritos (nos dois planos) que vivem ou viveram condição semelhante e esperam uma oportunidade para ajudá-lo.

  
[1]   Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos. IDE: Araras (SP), 2002.

[2]   Wikipedia. Acesso em 7 de junho de 2015

[3]   Ver Stevenson, I. Vinte casos sugestivos de reencarnação. Editora Vida & Consciência. São Paulo

[4]   DovBer Pinson. Reencarnação e Judaísmo. São Paulo (SP): Maayanoti, 2015.

[5]   Wikipedia. Acesso em 21 de junho de 2015

[6]   Wikipedia.Acesso em 28 de junho de 2015.

[7]   Emmanuel, Francisco Cândido Xavier(1939). A Caminho da Luz. Brasília (DF): FEB.


Almir Del Prette
São Carlos, SP (Brasil)


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sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A ilusão da família perfeita


Era uma vez Aloísio e Vera, um casal muito simpático; ambos de família espírita e atuantes no movimento. Desde o namoro, todos viam que seria um casamento que daria certo. E deu. Aloísio e Vera, com amor, companheirismo e tolerância, souberam construir uma relação saudável em todos os sentidos. 
Aloísio era advogado; Vera, professora. Ambos muito bem-sucedidos e estimados. E, como dedicados trabalhadores da seara espírita, sempre estiveram à frente em vários setores, não só do centro espírita, mas também do movimento espírita municipal e estadual. Enfim, Aloísio e Vera seguiram a tradição familiar e abraçaram o movimento espírita com determinação, trabalhando com afinco por ele e para ele. 
A união e a estabilidade de Aloísio e Vera, aliadas à dedicação de ambos à causa espírita, faziam com que o casal estivesse sempre cercado de admiração por todos. Era referência no movimento espírita. 
Dentre as várias atividades, o casal estivera, por um bom tempo, à frente da mocidade. Como evangelizadores, falavam para os jovens sobre felicidade conjugal, fidelidade, importância do namoro, formação familiar, divórcio... Tudo sempre visando a que os jovens, futuramente, encontrassem parceiro ideal e formassem um casal feliz como eles. 
Aloísio e Vera tinham três filhos: Douglas, Vítor e Luciana. E também tinham irmãos, cunhados, sobrinhos... 
Toda vez que um casal do movimento espírita local se separava, Aloísio e Vera, construtivamente, criticavam. Não entendiam aonde havia ido parar o amor que um prometera ao outro; diziam que as pessoas estavam brincando de casar; reprovavam o fim da união... Quando era na família de um deles, também. Irmãos e sobrinhos costumavam ser alvos de crítica caso se separassem, namorassem sem casar, ou “ficassem”, algo muito comum hoje em dia. Na visão deles, um espírita não poderia se separar ou fazer sexo sem se casar. E o casamento deveria ser de papel passado. 
Os filhos do casal ainda eram pequenos, e Aloísio e Vera olhavam os três com olhos alvissareiros. Na visão de ambos, os filhos não passariam por tempestades conjugais ou afetivas. Afinal, eram espíritas de berço, cresceram dentro do centro espírita. Começaram na evangelização infantil e, em seguida, iriam para a mocidade. Mais adiante, já adultos e plenamente integrados ao movimento espírita, teriam tarefas variadas no centro e, quiçá, no movimento espírita da cidade ou do Estado. Ato contínuo, eles se casariam com pessoas do próprio movimento espírita e teriam uniões conjugais perfeitas. Se não fossem espíritas, os escolhidos dos filhos decerto adeririam à causa, pois ninguém resiste ao Consolador Prometido. 
Filhos, noras e genros espíritas, netos espíritas, casamentos perfeitos e felizes! Aloísio e Vera vislumbravam a possibilidade de envelhecerem cercados por descendentes e agregados espíritas, diferentemente dos familiares e amigos, sempre às voltas com separações. 
Tudo ia bem na vida e nas esperanças do nosso feliz casal até que, um dia, Douglas, Vítor e Luciana entraram na vida adulta. 
Douglas, o mais velho, dentista, casou-se como manda o figurino. E com uma moça espírita, ainda por cima, para felicidade e contentamento dos pais.  Dois anos depois, o casamento acabava. Douglas e a esposa haviam chegado à conclusão que não se amavam tanto a ponto de quererem a companhia um do outro por anos a fio. Vera, a mãe, ficou muito chocada. Aloísio, o pai, chorou convulsivamente. Aquele deve ter sido o dia mais triste da vida dele. O casal espírita que havia idealizado filhos perfeitos com casamentos da mesma forma experimentava o gosto amargo da separação do mais velho. 
Depois da separação, Douglas não quis voltar para a casa dos pais. Foi morar sozinho. Livre como nunca pensara. De vez em quando, aparecia no centro para tomar um passe. Mas não se interessava em, digamos, seguir carreira no movimento espírita. 
Mais adiante, Douglas conheceu Talita, uma jovem com quem prontamente se afinou. Talita era mãe solteira de Carolina, menina que adorou Douglas assim que o conheceu (e ele, a ela). Foram morar juntos. Passado um tempinho, Douglas e Talita já eram pais de Carolina. O tão sonhado neto – no caso, uma neta – de Aloísio e Vera chegara, mas não da forma como haviam sonhado. Foi uma alegria mesclada com uma pitada de descontentamento. Afinal, a nora era mãe solteira. 
Vítor, o filho do meio, chef de cozinha, também se casou. Dono de um restaurante, conheceu Elaine, a esposa, especialista em vinhos, durante um evento. O casamento de Vítor deu certo. Ele encontrou de fato uma mulher que o completava, só que, ambos, devido aos vários eventos e viagens proporcionados na área em que atuavam, resolveram não ter filhos. Além disso, Vítor, que até então, por orientação dos pais, não dera importância a bebidas alcoólicas, passou, por influência da esposa e da profissão, a ser um apreciador dos bons vinhos. Ele não se tornou um bebedor contumaz, deixo claro. Mas gostava de harmonizar, ou seja, escolher que tipo de vinho ia melhor com carne bovina, peixe, cordeiro e por aí vai. Como espírita que era, gostava de estar no centro. Sempre que podia, ajudava nos eventos gastronômicos. Já preparara incríveis almoços beneficentes. Não dava expediente em outras atividades por causa do restaurante e das viagens e eventos gastronômicos em que, com prazer, estava sempre envolvido. 
Aloísio e Vera esperavam mais da união feliz de Vítor. Era um casamento que tinha tudo para lhes dar netos, mas Vítor e a esposa tiveram outros planos. E quando nosso casal de espíritas perfeito soube que o filho gostava de harmonizar os pratos por ele preparados com vinhos de uva tipo merlot,cabernet sauvignon etc., ficou muito triste. Exagero! Vítor não é nenhum alcoólatra! Graças à formação religiosa que teve, sabe muito bem o que faz! 
Por fim, Luciana, a caçula, profissional da área de turismo, aos 22 anos, conheceu Carlos, um executivo de 45, separado, e pai de três filhos. Ambos se gostaram e foram morar juntos, para decepção dos pais, que sonhavam um casamento de princesa para a única filha mulher. Não houve papel passado, nem bolo, nem doces. Luciana comunicou a decisão aos pais e, dias depois, fez as malas e se mudou para a casa do amado, com quem vive muito feliz até hoje. 
Ela e Carlos também não quiseram filhos. Ele já tinha três, e ela era nova; queria terminar os estudos e curtir o charmoso quarentão por quem se apaixonara. E como se entrosou muito bem com os enteados, praticamente da mesma idade dela, Luciana nunca teve muita vontade de ser mãe; deu-se por satisfeita como jovem madrasta de três adolescentes. 
Como boa espírita, Luciana frequentava um centro. Era evangelizadora de mocidade já que sempre gostou de lidar com jovens. Tanto que os enteados gostavam muito dela. 
Foi difícil para os pais aceitarem a decisão de Luciana. Até evitavam conversar sobre ela. Quando alguém perguntava, diziam que ela estava estudando no exterior. Embora não admitissem, Aloísio e Vera estavam com vergonha da filha. Acharam que sua atitude não condizia com a de uma moça de família. Ainda mais família espírita! Depois, felizmente, a poeira assentou. 
Tempos depois, Magda, prima de Vera, trouxe o casal à realidade. Após ouvir os dois tecerem um tapete de lamentações e decepções para com a prole, disse aos dois: – Sinto muito. Mas foi a melhor coisa que aconteceu a vocês. 
– Como assim? –retrucou Vera, atônita. 
–Vocês– disse Magda–sempre se acharam melhores do que os demais familiares e o pessoal do centro espírita. Sempre se acharam um modelo de família. Tinham a ilusão de que os filhos seriam iguais a vocês. Não contavam que eles cresceriam e fariam suas próprias escolhas. Vocês sempre acharam que as pessoas que não são espíritas, tal como vocês, não seriam tão bons espíritas como vocês. As escolhas dos meninos fizeram vocês colocarem os pés no chão. 
Magda quis dizer que o fato de Douglas, Vítor e Luciana serem espíritas não os isentava de serem cidadãos do mundo de hoje, em que o livre-arbítrio é mais dilatado. Um mundo no qual as mulheres são livres para administrarem a vida afetiva, sexual e profissional. Um mundo no qual o casamento de papel passado deixou de ser a única porta de entrada para a vida adulta. Um mundo no qual uma pessoa separada não carrega mais o estigma de décadas atrás. E quis dizer também que Aloísio e Vera não haviam falhado como pais. Pelo contrário, haviam dado aos três, desde a mais tenra idade, amor à luz da imortalidade da alma. Um amor capaz de torná-los seguros para fazer as próprias escolhas sem culpa e com maturidade. E quis dizer também que pais espíritas não devem achar que falharam porque os filhos não quiseram abraçar tarefas no centro espírita. Se quiserem, ótimo! Sempre há trabalho esperando. Mas o que importava é que os três eram boas pessoas, cidadãos do bem, éticos, íntegros, queridos, honestos e com sólida formação cristã e moral para seguirem suas vidas; espíritas, quer estivessem ou não integrados ao movimento espírita. E, acima de tudo, eram três irmãos que se adoravam e gostavam muito dos pais. 
A partir da advertência de Magda, Aloísio e Vera passaram a perceber que, de fato, os filhos estavam felizes com as próprias escolhas. Os três eram adultos. Portanto, competia a eles viver suas vidas e arcarem com as consequências de seus erros e acertos. Mesmo porque, Talita, Elaine e Carlos eram boa gente. Aloísio e Vera deixaram de lado o pé atrás e facilitaram a aproximação dos três. Com isso, perceberam que a filha mais velha de Talita e os três filhos de Carlos também gostavam muito deles. Por que não aceitá-los como netos também? Aceitaram. Essa abertura gerou um grande bem-estar para todo mundo. 
Daí por diante, nosso casal passou a cuidar mais um do outro, a viajar mais vezes. Iniciaram até atividades físicas. Enfim, foram viver sua vida de casal feliz, aceitaram as escolhas dos filhos e recuperaram a harmonia. 
A ilusão da família perfeita nos moldes por eles estabelecidos terminara. Aloísio e Vera haviam se humanizado. Tornaram-se, inclusive, não só melhores pessoas, como melhores espíritas. Menos bitolados, menos rigorosos... Mais tolerantes, flexíveis, arejados, modernos e compreensivos!

Marcelo Teixeira
Petrópolis, RJ (Brasil)


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