domingo, 20 de dezembro de 2015

Natal de amor


Após a Introdução de O Livro dos Espíritos, o leitor atento encontra matéria com o título Prolegômenos que significa exposição preliminar dos princípios gerais de qualquer ciência ou arte, introdução expositiva de algum tratado científico. Ela vem assinada por diversos sábios da Humanidade e entre tais assinaturas destaca-se a de Vicente de Paulo (1576-1660), um sacerdote francês que em 1633 fundou a Congregação das Irmãs de Caridade com o objetivo de atender os pobres e os enfermos. 
Quando morreu Vicente, já havia 40 casas das Irmãs de Caridade, que depois se espalharam pelo mundo e chegaram ao Brasil em 1849. Hoje, inspiradas por tal obra, distribuem-se pelo mundo através de hospitais, ambulatórios médicos, dentários, enfermagem, sendo mais conhecido por aqui através das Associações Vicentinas ou Casas de São Vicente de Paulo. 
Por que falamos de Vicente de Paulo? Justamente para falar do amor... O que é o amor? Seria a afeição entre homem e mulher? ou o amor de mãe? Todas são expressões do amor, mas gostaríamos de comentar o amor vivido e demonstrado por Vicente, assim como também por Jesus, Francisco de Assis e tantos outros importantes nomes da história humana, inclusive na atualidade como Irmã Dulce, Madre Tereza de Calcutá ou Chico Xavier... 
A Doutrina de Jesus, por exemplo, é a mais alta expressão do amor. Ele já ensinava que o maior mandamento é o amor a Deus, ao próximo como a si mesmo... A própria Parábola do bom samaritano já indica isso. O Livro dos Espíritos em sua questão 888 traz resposta de Vicente e também em O Evangelho Segundo o Espiritismo a presença de Vicente é marcante na exaltação do amor ao próximo, através da caridade. 
Nossa ausência de autoridade para falar do assunto, face à fragilidade na vivência espontânea do amor ao próximo não nos tira, entretanto, o entusiasmo de falar sobre o amor. Toca-nos o coração ver nossos irmãos carentes entregues ao relento, passando imensas dificuldades na própria sobrevivência, sofrendo a humilhação do desprezo social. Quantos irmãos nossos não vemos pelas ruas, no trânsito, carregando caixas de papelão ou coletando latinhas de refrigerantes, crianças em semáforos, velhos abandonados, enfermos entregues à própria sorte em hospitais... 
A mensagem de Vicente de Paulo, entre tantos vultos inspirados pela mensagem do Evangelho, convida-nos a essa face real do amor. Deixemo-nos impregnar por tais exemplos e verdadeiros convites para o bem. É claro que ainda não somos capazes de agir como eles, nem ter a espontaneidade com que viveram, mas pelo menos pensemos nos exemplos que deram diante de nossos irmãos em dificuldade que encontremos pelo caminho, mesmo que for apenas para oferecer-lhes um sorriso e um minuto de atenção... 
Quando chegamos ao Natal, que o amor trazido por Jesus nos inspire as ações nesse sentido para efetivamente vivermos o amor espontaneamente.

Orson Peter Carrara

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Tão perto, tão longe


O poeta falava ao jornalista sobre seu assunto mais íntimo: a poesia. Tornara-se a pouco imortal, quase ao mesmo tempo em que a matéria frágil lhe anunciara seus oitenta anos de perfeita destrutibilidade. O jornalista matreiro e experiente esquenta a conversa, recordando: você não acredita em nada além da vida, não é? Sorrindo um riso quase natural, espontâneo, o poeta recém-empossado na Academia Brasileira de Letras reflete brevemente e confirma: não, não acredito; até gostaria de crer, dizem que é melhor acreditar do que não acreditar, mas eu não consigo mesmo. Aqui se aplica bem a frase de Vinícius: “que seja imortal enquanto dure”. 
Alguns minutos antes, o poeta revelara o seu processo de composição poética e deixara no ar uma interrogação a respeito das ideias, dos temas e mesmo das motivações para compor suas consagradas obras. Tudo vinha simplesmente, sem planejamento prévio. Eu não planejei a minha vida, nada, tudo veio naturalmente, diz. O jornalista contrapõe, então: mas a inspiração depende muito da transpiração, não é? Sim, afirma o poeta, mas eu não faço muito esforço, não. Claro, cabe a mim dar o tom, o estilo, apurar, trabalhar o texto. As coisas chegam e acho que esse é o caso, porque a pessoa não é poeta, escritor etc. se não nasceu com o dom. Não adianta querer ser uma coisa se o dom não está presente, se ele não nasceu com aquilo. O poeta fala de algo que para ele está no DNA, com a certeza de todas as certezas, porque é isso que o alimenta, é nisso que acredita. 
O ser humano é um ser limite. Não digo limitado, apenas, mas digo que vive na fronteira da vida e da morte, do espírito e da matéria e de forma geral não tem a percepção clara disso. Está sempre esbarrando num e noutro lado da fronteira, muito próximo do crer e do não crer, quase a descobrir o que um e outro lado apresentam, sem, contudo, ultrapassar a linha tênue que separa a matéria do espírito. Ele não é nem completamente um corpo, nem completamente um espírito. Isso vale tanto para o homem material, feito o poeta a crer no fim, na extinção total da vida ou término do ciclo, como vale também para o homem espiritual, que crê na continuidade, no depois, mas está sempre esbarrando nas dúvidas da vida material. 
Não me agrada a ideia da existência de alguém que não crê; penso que o ser humano é aquele que crê sempre em alguma coisa, e, por crer, age, sonha, pensa, descortina. O poeta que revela sua incapacidade de crer em algo após a morte, na verdade, crê na inutilidade da vida, na sua finitude total. Crê na imortalidade apenas da duração, daquilo que é válido viver, mas sem a perspectiva da repetição, do renascimento ou da permanência para além do limite da vida material. O futuro nele está sempre pressionado pela morte e só é válido pensar neste futuro até o horizonte próximo, após o qual não há nada mais. 
Algo não muito diferente se passa com o homem espiritualista que acredita na continuidade e no retorno, mas vive pressionado pelos conflitos do viver no corpo e anseia sempre colocar os pés no outro lado da fronteira, antes mesmo de completar a experiência do próprio corpo. Sua dúvida maior está em como viver na matéria sem perder a essência do espírito, o que o coloca na condição de não viver completamente, nem a perspectiva do espírito nem a do corpo. 
Nessa fronteira-limite os dois se esbarram sem perceber, e esbarram permanentemente, porque o homem de Herculano não é o homem-corpo, mas o homem-espírito, apesar de seus quereres e de suas negações. A inspiração do poeta é uma realidade, mas parte considerável de sua origem, de sua fonte – esta relação comunicativa misteriosa, a envolver os de cá e os de lá –, para o poeta-corpo, só alcança quem nasceu com o dom de ser poeta, escritor, dramaturgo, mas, na verdade, alcança a todos, em todas as áreas, onde a criação esteja sendo exercida por qualquer forma de arte, ou onde a vida humana consome-se no existente. 
Dois humanos vivem na inspiração, da inspiração, com a inspiração. Não penso apenas em dois humanos distantes, um aqui, outro além; penso, também, em dois humanos visíveis, táteis, que estão ou não lado a lado, mas que habitam o mundo do pensamento e não apenas o do DNA. Porque o seu amigo do lado, que o abraça e dá bom-dia é fonte de inspiração; porque o seu olhar capta as imagens da tristeza, sem perceber que forças o movem para que se dirija para o lado onde a tristeza se derrama. A sua inspiração o leva a criar, e a criação o faz transformar a tristeza em possibilidade de alegria, sonhos, desejos, esperanças. Você vive ali, naquela fronteira-limite, tão perto e tão longe; perto demais para perceber; longe demais para se apropriar. A matéria e o espírito escorregam entre nossos dedos, no líquido fluído das ideias: vivemos no corpo buscando o imaterial, ou vivemos no imaterial desejando o corpo. O conflito é a nossa inconstância diária. Não sabemos ainda, não encontramos a segurança do corpo que abraça o espírito, nem do espírito que abraça o corpo. A fronteira-limite é ainda o nosso mistério. 

Wilson Garcia
Recife, PE (Brasil) 

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