Por conta da conclusão do ensino médio de pessoa próxima, compareci a um culto
ecumênico, no qual, na fala de diversos segmentos religiosos representados,
destacou-se uma que tratou da temática da graça, como caminho de salvação e de
redenção da criatura humana, a despeito de sua conduta ou dos conceitos mais
elementares de justiça.
Defendeu o companheiro, em um discurso conhecido de outras
plenárias e atores, a visão de uma salvação que viria pela fé, independente das
suas obras. Fé em um conceito difuso, que mistura um sentimento íntimo e de
superação com uma crença específica em determinada entidade, no caso Jesus. Uma
dita salvação dos filhos de Deus que nega aspectos geográficos e históricos,
distribuindo bênçãos de forma segregadora e não universalizante.
De Lutero às indulgências da Idade Média, essas ideias e
discussões são antigas, imbricadas nos velhos jogos entre a religião e o poder
formal. Surgem às vezes travestidas com roupagens do novo, perambulando por aí,
nos discursos, nas ideias sedutoras de sermos salvos por uma opção momentânea,
ignorando a grandeza do que pensamos ser uma vida eterna. Causa-nos espanto,
mas são posturas concretas e que se materializam em situações tragicômicas do
bom ser tomado pelo mau, na desconsideração da sentença cristã que se reconhece
a árvore pelos frutos.
Instigante discussão esta, que pode aplacar consciências ao
justificar os atos mais reprováveis, dissociando, de forma lamentável, a ação,
a intenção do Espírito encarnado e o seu destino futuro, subordinando essa
vinculação a crenças determinadas, ao humor divino, em um movimento que
fortalece os sectarismos, as lutas e as politicagens que pululam na história
das religiões.
Dependeríamos, nessa ótica, da graça, como um bem imerecido,
um dom gratuito que Deus concede à humanidade, motivado pela sua misericórdia,
em situações que, apesar de parecerem sem lógica, são regidas por regras
implícitas, como a fé ou a adoção de determinados ritos, que fariam esse Deus
sorrir para nós.
Aí, surge o “pulo do gato” de Kardec e dos Espíritos da
codificação. A proposta espírita é diferente! É uma proposta que conjuga a
ideia de mérito e a de misericórdia. Alia justiça com amor...
Mérito na Lei de Ação e Reação, na necessidade de reparação
do ato que prejudica o próximo pelo próprio autor, na colheita livre, mas que
tem a semeadura obrigatória, na Lei de “causa e efeito”, na qual erramos e
aprendemos. Segundo Emmanuel, “Jesus a ninguém prometeu direitos sem deveres(1)”.
Ideias estampadas nas próprias obras espíritas, nos romances e narrativas do
plano espiritual, e que elevam a ideia de justiça a outro patamar.
O mérito é pedagógico, permite ao Espírito aprender e
crescer, com erros e acertos, tornando factível o conceito da vida eterna. Não
importa nesse sentido o punir e sim o crescimento, a luta, na justa
interrogação de “O Livro dos Espíritos”: “Onde estaria o merecimento sem a
luta?(2)”.
Entretanto, Deus é amor e assim também é a sua Lei... O que
seria de nós sem a misericórdia divina? É necessário compreender a fragilidade
da criatura humana, e a sua luta para superar seus desafios diariamente. A obra
evangélica transmite essa compaixão em várias passagens, nas quais Jesus
mostrou que conhece bem a natureza do Espírito encarnado, suas fraquezas e
possibilidades.
A palavra misericórdia vem da fusão das palavras miserere
(ter compaixão), e cordis (coração), ou seja, um novo olhar da realidade com
amor no coração. “A misericórdia é o complemento da mansuetude (...). Ela
consiste no esquecimento e no perdão das ofensas(3).” Amor com equilíbrio, pois
o perdão das ofensas não implica em abandonar o conceito de justiça e a ideia
de que o Espírito necessita aprender para crescer.
O psicólogo Erich Fromm tratou bem da questão dessas duas
grandezas, quando se referiu ao equilíbrio entre o princípio paternal e
maternal, representado o segundo pelo amor incondicional, sem recompensas, e o
primeiro pelo amor em razão dos próprios méritos(4). Deus tem os dois
princípios em harmonia. Ama seus filhos incondicionalmente, mas exige deles
compromissos com o seu crescimento espiritual, na medida de suas capacidades.
Esses princípios permeiam toda a evolução da humanidade!
A graça, por esse prisma, seria fruto de um Deus carente,
sequioso de servidores para adorá-lo, como eram os deuses da antiguidade que
inspiraram alguns desses paradigmas. Voltamos aos deuses antropomórficos! Essa
visão teológica tornaria valores, como respeito ao próximo, trabalho e justiça,
sem sentido. O mundo seria um paraíso da inação, com todos à espera dessa
graça, como ocorreu concretamente na Idade Média, em espetáculos de hipocrisia
e de miséria moral.
Não se trata só de uma questão de justiça, de punir, e
sim uma questão de pedagogia, de evolução, de crescimento e aprimoramento, como
necessidades intrínsecas do Espírito. Que graça teria sermos criados apenas
para acolher um caminho que muitos não têm acesso, para sermos salvos de um
pecado que não cometemos, por circunstâncias ao bel-prazer da divindade?
Assim, no paradigma espírita, para todos é possível crescer,
nas diversas roupagens reencarnatórias, e esvaziam-se instrumentos de poder e
caminhos exclusivistas, pois a justiça e o mérito se fazem para cada um, mas
têm como fiel da sua balança o amor, a misericórdia divina que, com seus
múltiplos acréscimos, nos conduz diante das provas duras da existência, para a
cada dia recomeçar.
O Espiritismo, como se propõe a ser uma doutrina
libertadora, de amadurecimento e evolução de Espíritos, nos aponta o
crescimento espiritual pela construção de nosso caminho, com os outros, convivendo
e vivendo, amando e sendo amado, errando e tentando acertar, mas sob o olhar de
um Pai amoroso, que vela por nós, ajudado por outros Espíritos como nós.
[1] Caminho Espírita
- Psicografia de Francisco Cândido Xavier. Espíritos Diversos.
[2] O Livro dos
Espíritos, Pergunta 119.
[3] O Evangelho
segundo o Espiritismo.
[4] A Arte de Amar.
Erich Fromm. Editora Martins Fontes.
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