sábado, 6 de setembro de 2014
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
A primeira pedra
Emblemática no evangelho de Jesus a passagem do
apedrejamento da mulher adúltera, situação na qual o Cristo diz que “quem não
tiver pecados, que atire a primeira pedra” (João, Capítulo 8). Tal afirmativa,
que calou os populares que se arvoravam de algozes pela dilapidação, ainda
ecoa, pela sua lógica, aplacando os nossos ódios e os nossos instintos mais
violentos, diante das situações presenciadas no cotidiano.
Jesus, que em outras situações defendeu a justiça, no “dai a
César o que é de César” e no “a cada um segundo as suas obras”, não menos
famosos que o enunciado sobre a primeira pedra, diante daquela mulher condenada
pela legislação vigente, traria agora uma mensagem de leniência e de
impunidade, em uma apologia ao crime?
Uma resposta afirmativa seria uma visão superficial e
contraditória da situação em tela. Ao nosso ver, Jesus condena sim o julgamento
precipitado, apaixonado e desmedido, que não sopesa o contexto e a
subjetividade de cada situação, chamando a reflexão pelo “quem não tiver
pecados”, inibindo uma pseudo justiça feita com as próprias mãos, mas que
desconsidera princípios basilares de proporcionalidade, contraditório,
razoabilidade e outros afetos ao direito penal, que muito evoluiu desde a época
do Cristo e que compõe o arcabouço jurídico de qualquer Estado moderno.
Mais gravosa que a pena de morte, a dita justiça com as
próprias mãos, estampada nos linchamentos, presentes em nossa sociedade e
acentuados mais recentemente, é uma explosão de ódio, derivada de uma gama de
injustiças menores percebidas e que se materializa em uma injustiça ainda
maior, na condenação a uma morte cruel e desumana, que independente de ser um
inocente ou um motivo comezinho, traduz-se na barbárie que aplaca vinganças e
produz mais dor onde esta já campeava.
A chamada a reflexão de Jesus nos convida a assumir o lugar
da vítima e a refletir em qual é a melhor maneira de atuarmos frente a esta
situação, o que necessitaríamos se fôssemos nós mesmos ali no banco dos réus da
rua, dado que as pelas falhas cometidas, no espectro das reencarnações, ser réu
é apenas uma questão temporal.
Ataques de ódio com a promoção de linchamentos e a apologia
a práticas dessa natureza, ao meu ver, afrontam diametralmente a conduta
espírita na defesa da vida, argumentação ilustrada por autores fundamentais da
doutrina, como na pergunta 761 de “O livro dos espíritos”, que assevera: “Há
outros meios de ele se preservar do perigo, que não matando. Demais, é preciso
abrir e não fechar ao criminoso a porta do arrependimento. ”
Ou ainda na pena de Joana de Angelis no seu “Após a
Tempestade”, quando diz: “A tarefa que compete às leis é a de eliminar o crime,
as causas que o fomentam, não o equivocado criminoso. A morte do delinquente
não devolve a vida da vítima. Ao invés da preocupação de matar, encontrar
recursos para estimular a vida. Educar, reeducar, são impositivos inadiáveis;
matar, não. Tenhamos tento! Não há, no Evangelho, um só versículo que apoie a
pena de morte. ”
A pena de Humberto de Campos, na psicografia de Chico
Xavier, no seu “Boa nova”, não se furta dessa antiga questão, quando se refere
a mulher adúltera: “ – Ninguém pode contestar que ela tenha pecado; quem estará
irrepreensível na face da Terra? Há sacerdotes da lei, magistrados e filósofos,
que prostituíram suas almas por mais baixo preço; contudo, ainda não lhes vi os
acusadores. A hipocrisia costuma campear impune, enquanto se atiram pedras ao
sofrimento. João, o mundo está cheio de túmulos caiados. ”
Como se vê, a problemática do crime, da violência urbana e
da intolerância com isso tudo é antiga e complexa, demandando soluções de igual
natureza, dado que a soma de linchamentos ocorridos até hoje não parece ter
surtido efeito na redução de índices de violência nas comunidades que dele
fizeram uso.
A visão do dito justiçamento é uma percepção segmentada do
problema, descompensada e que tomada pelo calor dos acontecimentos, ignora as
medidas sociais necessárias, para além de saúde e educação, mas também nas
políticas de segurança de qualidade que coíbam e apurem os crimes, remetendo o
réu ao Juízo, que tem grande importância nesse processo, no contexto do chamado
Estado democrático de Direito.
O ódio é uma força de características irracionais, de forma
parcial. Ou seja, ela se volta para uma causa, ainda que a sua percepção seja
nebulosa, e a ela associa a necessidade de descarregar a sua energia represada,
muitas vezes fomentada pela indignação, pela dor, pelas injustiças cotidianas e
ainda, por outras vozes, no ambiente das chamadas redes sociais.
O cidadão comum, nesses ambientes de exaltação, como uma
greve, um jogo de futebol, se vê tomado desses ímpetos marcantes e por vezes,
se vê envolvido em processos de justiçamento, esquecendo aquela voz que lembra
a ele a sua condição de espírito imortal.
Casos emblemáticos como a Escola Base (SP) e o linchamento
da jovem confundida com uma fotografia na internet ocorrida em 2014 no Guarujá
(SP) se agregam a outros, ocultos em outras tipologias penais, atingindo
culpados e inocentes, como formas bárbaras de promover uma vingança contra a
nossa própria imperfeição como seres humanas batizada de justiçamento.
Como espíritas e cristãos, lutemos pela justiça, defendamos
a vida, com uma visão ampla e racional dessa questão, não se deixando seduzir
pelo canto das soluções fáceis em arranjos complexos, na defesa de atos que
servem apenas para aplacar ódios momentâneos, gerando, em termos práticos, mais
violência e sofrimento, para vítimas e algozes.
A exemplificação do bem, a postura cristã, não é privilégio
dos mártires das letras evangélicas. A cada dia, cada um pode e deve, no seu
campo de luta, exemplificar o que o Cristo espera de nós, em um desafio
pessoal, como fez em maio de 2014 no Rio de Janeiro a jovem estudante de
arquitetura Mikhaila Copello, que se pôs à frente de linchadores na defesa de
um assaltante que já fora imobilizado, se valendo, como em uma parábola
moderna, de palavras, do seu corpo e da sua coragem no testemunho de sua forma
de ver a vida, impedindo que aqueles espíritos algozes complicassem a sua
encarnação, convidando-os a reflexão da “primeira pedra”.
Ainda há esperança! Nós, espíritos encarnados, podemos fazer
melhor do que isso! A caminhada do bem é dolorosa, e apesar do crime, que a
todos causa indignação, temos o dever de fazer ecoar as palavras do Cristo, que
nos trouxeram a reflexão quando empunhávamos pedras, passados mais de 2000
anos, nos indicando na ocasião em que local da turba Jesus se posicionou, antes
e depois do momento da dilapidação.
Marcus Vinicius de Azevedo Braga
Residindo atualmente na cidade do Rio de Janeiro, espírita
desde 1990, atua no movimento espírita na evangelização infantil, sendo também
expositor. Vinculado a Casa Espírita Amazonas Hércules (www.ceah.org.br). É
colaborador assíduo do jornal Correio Espírita (RJ) e da revista eletrônica O Consolador
(Paraná). É autor do livro Alegria de Servir (2001), publicado pela Federação
Espírita Brasileira (FEB) e do Livro "Você sabe quem viu Jesus
nascer" (2013), editado pela Editora Virtual O Consolador.
Imagem ilustrativa
segunda-feira, 1 de setembro de 2014
Um Pai de Família
Nicolas Cage é o ator principal do filme Um pai de família,
lançado em dezembro de 2000 nos principais cinemas do país. O filme mostra a
experiência de um bem sucedido executivo de grande banco americano. Com todo o
poder nas mãos, podendo adquirir tudo que desejasse e ao mesmo tempo contando
com bom número de servidores e subordinados, controlava o grande Banco com mãos
de ferro. Conhecido pela grande inteligência e muita habilidade nas questões
econômicas, dedicava sua vida em proporcionar lucros crescentes à empresa, que
o valorizava com altos salários e invejadas mordomias. Na Noite de Natal,
viu-se, entretanto, sozinho e talvez um tanto melancólico recordava-se da
antiga namorada deixada há 13 anos, quando resolveu seguir a bem sucedida
carreira executiva.
A sequência do filme deixa entender que o telefonema da
ex-namorada, durante o dia no escritório, fê-lo buscar recordações, embora
tenha recusado atender o telefone. E nesse estado de espírito, dormiu. Dormiu e
sonhou que acordava em outra vida, agora casado com aquela que fora sua
namorada e pai de dois filhos. Assustado com a rotina de uma vida familiar,
tentou voltar ao Banco onde não foi reconhecido. Desesperado, teve que se
contentar com as dificuldades da vida conjugal, de pai de família... Embora
mantendo a memória de ser o famoso executivo, não conseguia retomar a própria
realidade.
O filme desenrola-se quase por inteiro no cotidiano de uma
família de classe média, culminando com o despertar de nosso personagem em sua
vida real de destacado diretor do famoso Banco. O despertar, entretanto,
provocou o cancelamento de inadiável reunião marcada para aquela manhã e a
busca da antiga namorada, a quem relatou todo o sonho - inclusive citando nome
e idade dos filhos, seus sonhos e detalhes da vida em comum. OThe end deixa que
o público tire suas próprias conclusões, sugerindo um reatar de namoro para
transformar em realidade o sonho vivido com tanta intensidade. E há uma frase
no filme que é a marca da fita cinematográfica ora comentada: Não importa nosso
endereço, o importante é que estejamos juntos. A frase, muito além do aspecto
romântico entre casais, indica a importância da família e da convivência entre
seres afins, normalmente reunidos no contexto familiar visando o progresso,
como bem definem as Leis Divinas. Fica a sugestão ao leitor para apreciação do
bem elaborado trabalho.
Podemos fazer um estudo dos tres parágrafos acima à luz da
Doutrina Espírita. Podemos assistir o filme e enxergá-lo sob a ótica espírita.
Vários itens podem ser enquadrados. Para efeito didático do artigo, podemos
analisar a questão dos laços de família e da missão da paternidade
(respectivamente questões 773 a 775 e 582 de O Livro dos Espíritos, que
sugerimos para consulta do leitor). Sugerimos porque desejamos analisar o tema
com mais abrangência sob outro aspecto: a dos sonhos. Embora se trate de um
filme, com suas fantasias, podemos classificar o sonho de que forma?
No mesmo O Livro dos Espíritos, as questões 400 a 421 tratam
do assunto, de onde trazemos as informações seguintes dadas pelos espíritos: O
Espírito jamais fica inativo durante o sono do corpo; podemos avaliar a
liberdade do espírito durante o sono pelos sonhos; dispondo de mais faculdades
que no estado de vigília, durante o sono - enquanto o corpo repousa - o
espírito tem a lembrança do passado e às vezes a previsão do futuro; o espírito
vê em sonho aquilo que deseja, porque vai procurá-lo; pessoas que se conhecem
ou não podem visitar-se durante o sono do corpo, se visitarem e conversarem.
Já na Revista Espírita (julho de 1865 - vol. 7 - edição
Edicel), com o título Teoria dos Sonhos, Allan Kardec desenvolve considerações
importantes sobre a questão. Destaca uma classificação sobre os sonhos e
apresenta o princípio básico dos sonhos. Usando palavras do próprio
Codificador, referindo-se ao Espiritismo: Demonstra que o sonho, o
sonambulismo, o êxtase, a dupla vista, o pressentimento, a intuição do futuro,
a penetração do pensamento não passam de variantes e graus de um mesmo
princípio: a emancipação da alma, mais ou menos desprendida da matéria.
Esta incessante atividade do Espírito durante o sono do
corpo indica que muitas providências, decisões de interesse da alma são tomadas
durante o desprendimento pelo sono. Apenas o corpo dorme, pois na vigília ou
durante o sono o comandante do corpo é o espírito, senhor absoluto de decisões
que o livre arbítrio lhe confere. Decisões que vão interferir na felicidade ou
infelicidade, saúde ou enfermidade que o corpo vai experimentar, por
constituir-se ele em instrumento dirigido pelo Espírito nele encarnado, como
ensina a notável Doutrina Espírita. Na verdade, vivemos uma única realidade e
quando na vigília estamos parcialmente bloqueados pelo corpo físico. Quando
desprendidos pelo sono, desfrutamos da liberdade plena, cujas imagens e
experiências o sonho registra, muitas vezes é claro de forma confusa pois o
corpo não participou e o registro pelo cérebro carnal fica confuso. Entre os
sonhos, e aqui usando palavras do Codificador ainda na Revista Espírita acima
citada, uns há que que tem um caráter de tal modo positivo que, racionalmente,
não poderiam ser atribuídos a simples jogo de imaginação; tais são aqueles nos
quais, ao despertar, adquire-se a prova da realidade do que se viu, e em que
absolutamente não se pensava.
Não se confunda aqui os sonhos provenientes de pesadelos por
alimentação inadequada ou provocados por imaginação excitada e até aqueles
oriundos de exageradas preocupações materiais. Vamos enquadrar os casos de
origem espiritual, de ativa participação do espírito.
No caso do filme citado, excluindo-se os exageros da
imaginação e da fantasia, poderá notar o leitor que tiver oportunidade de
assistir, que tudo foi um sonho, mas a decisão final coube ao personagem da
trama vivida, para mudar ou transformar em realidade aquilo que verdadeiramente
buscava. E abrimos horizontes para outra questão básica: o livre-arbítrio, que
para não alongar o artigo deixo ao leitor pesquisar nas questões 843 a 850 de O
Livro dos Espíritos. Porém, a mensagem do filme fica: não importa o endereço,
importante é que estejamos sempre juntos.
Orson Peter Carrara
sexta-feira, 29 de agosto de 2014
De Saulo a Paulo
E eis que no meio da estrada repentina luz se faz, mais luminosa que o sol, quase ofuscando o rapaz.
Tremendo de comoção, Saulo tomba do camelo.
No céu se rasga um caminho e desce alguém para vê-lo.
Voz suave, olhar profundo, rosto belíssimo, santo, pergunta esse Alguém a Saulo:
— Por que me persegues tanto?
Responde Saulo espantado:
— Mas quem sois vós, meu Senhor?
— Sou Jesus, a quem persegues, com tanta raiva e rancor!
Há exatos 40 anos, quando tinha apenas 11 anos de idade, li
pela primeira vez Paulo e Estêvão, romance de Emmanuel, psicografado por Chico
Xavier. Ou melhor, minha mãe leu em voz alta para mim, porque descobriu que eu
estava lendo escondido no banheiro. Ela achava que o livro era muito pesado
para minha idade e não queria que eu lesse. Mas acabou ela mesma fazendo a
leitura, não sei se censurando alguma coisa. Morávamos então em Berlim. E no
inverno sombrio daquela cidade, na época ainda com o muro, que tanto nos
deprimia, fiquei apaixonada pela figura de Paulo, pela história de sua vida.
Depois dessa primeira vez, li mais que 50 vezes esse livro.
E isso não é hipérbole. Parei de contar quando cheguei à 50ª leitura. E passei
a estudar vorazmente todas as versões da vida do apóstolo. A que está nos Atos,
suas Epístolas, li narrativas católicas, protestantes, ateias e a que mais me
encantou foi a escrita na primeira metade do século XX, por um judeu, Sholem
Ash, intitulada O Apóstolo. Nos últimos 15 anos, com o intenso envolvimento com
a Pedagogia Espírita e questões educacionais, não me dediquei mais a esse tema.
Agora estou lançando o livro de Saulo a Paulo, a história
recontada inteiramente em versos para crianças e que faz parte da série Grandes
Pessoas. Na verdade, muito antes de imaginar lançar essa série, quando ainda
nem tinha fundado a Editora Comenius e minha mãe ainda estava encarnada,
escrevi esse texto, constituído de 70 estrofes. Talvez uns 18 ou 19 anos atrás.
Por conta desse lançamento, reli de cabo a rabo Paulo e
Estêvão e decidi fazer esse balanço público da minha relação com Paulo de
Tarso. Essa releitura me fez muito bem, porque me levou às motivações profundas
que enraizaram os ideais dessa minha presente vida e aos sentimentos mais
viscerais que ainda nutrem a minha personalidade.
Primeiro, devo dizer, que o romance de Emmanuel resistiu ao
tempo, em sua estrutura literária, belissimamente escrito, em sua mensagem que
revitaliza o espírito e acende ideais. Apesar, é claro, de hoje minha visão a
respeito desse livro ser muito diversa de anos atrás. Dediquei-me ao estudo dos
primeiros 300 anos de Cristianismo, com autores como Bart Ehrman, Richard
Rubenstein ou Paul Johnson, afora todas as novidades de manuscritos descobertos
no século XX, que lançaram novas luzes sobre os Evangelhos. Com esse
conhecimento, fica claro que o romance de Emmanuel é um romance. Tem uma
validade histórica relativa. Por exemplo, sabemos hoje que os conflitos entre
Paulo e Tiago não foram tão amistosos como parecem ter sido nos relatos de
Emmanuel, com uma reconciliação final tão fraterna e cristã. Mais: Paulo
certamente conservou traços de autoritarismo de sua personalidade depois de sua
conversão. E não se tornou aquele modelo de humildade que Emmanuel retrata.
Outra coisa que me chamou atenção nessa leitura de agora: na narrativa de
Emmanuel, a leitura e a cópia de um manuscrito de Levi ocupam lugar central da
história. Todos os apóstolos liam, copiavam etc. Hoje se sabe que eram todos
analfabetos. Com exceção do próprio Paulo, que era doutor da Lei e talvez de
Mateus (ou Levi), que era cobrador de impostos. A escrita e a leitura não
ocupavam essa centralidade entre os primeiros cristãos, mas sim o ensino oral,
pois a maioria da população não sabia nem ler nem escrever.
Tudo isso apenas para dizer que os romances mediúnicos (os
bons romances que hoje nem existem mais) não têm a intenção de nos dar
informações históricas, porque cabe a nós, encarnados, pesquisar a História. A
intenção dos Espíritos é de nos edificar com uma mensagem estimulante, uma
inspiração positiva – como aliás, fez comigo.
Mas voltemos à figura de Paulo. Passado esse arrebatamento
juvenil pelo apóstolo, tive que me defrontar com as numerosas críticas que
existem em torno de sua doutrina e atuação. Muitos historiadores do
cristianismo, entre eles Charles Guignebert (que li por conselho de Herculano
Pires) ou Paul Johnson, consideram que Paulo é o verdadeiro fundador da Igreja,
tendo lançado a base dos dogmas que ainda empanam a pureza da mensagem de
Jesus. Exemplo disso é a ideia do pecado original, que não aparece nas palavras
de Cristo, sempre otimista em relação ao ser humano: “vós sois deuses”, “sede
perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”.
Outra acusação séria e verdadeira, feita a Paulo, é que se
encontram em suas epístolas, traços do machismo que promoveu a exclusão da
mulher como participante ativa nas práticas cristãs. E ainda há seu
conservadorismo político, manifesto por exemplo na Epístola aos Romanos, que
pode ter fundamentado a teoria do “direito divino” na Idade Média, ideia
segundo a qual temos de respeitar a autoridade constituída, porque ela foi
posta por Deus.
É verdade que Paulo, como ex-doutor da Lei judaica, como
filho de seu tempo, numa cultura greco-romana e judaica (as três extremamente
patriarcais), inserido num contexto pessoal de culpa (tinha matado Estêvão,
promovido vasta e sangrenta perseguição aos cristãos), impregnado dos conceitos
bíblicos do pecado, não poderia se furtar a carregar tudo isso para sua
interpretação da mensagem de Jesus! Não é possível julgarmos um homem de dois
mil anos atrás, com nossos conceitos de hoje. Ele compreendeu e traduziu Jesus,
como um ex-doutor da Lei daquele contexto histórico e com aquela história
pessoal poderia compreender!
Mas o que pode ainda nos inspirar Paulo, sua luta, sua
vida?…Muitas coisas. Tanto que ao reler sua história agora, aos 51 anos de
idade, consegui sentir em mim as mesmas emoções motivadoras, que me tocaram aos
11 anos de idade.
Embora carregando para a sua tarefa de difusão do
cristianismo nascente, as marcas de sua herança cultural, só Paulo podia fazer
o que fez: arrancar a mensagem de Jesus do exclusivismo judaico e espalhá-la
aos quatro cantos do Império Romano. Não foi à toa que Jesus o chamou para
isso. O que me fascina em Paulo, ainda hoje, é seu espírito desbravador e
universalista, fiel até o sacrifício e a morte a uma incumbência recebida. É
daquelas almas que quando possuídas de um ideal, quando encarregadas de uma
missão, não medem esforços, não se detém diante de nenhum obstáculo, percorrem
estradas, atravessam mares, se defrontam com inimigos e vão até o fim. Devoção
sem limites, ímpeto sem descanso, coragem sem esmorecimento.
Exatamente dessas virtudes precisava o homem que fosse
desentranhar a mensagem de Jesus do seu horizonte apenas judaico, para lançá-la
ao mundo e semeá-la na história e fazer com que ainda hoje a tivéssemos em
mãos. E isso, apesar de suas licenças históricas, o romance de Emmanuel retrata
muito bem.
E exatamente dessas virtudes que precisa qualquer pessoa
ainda hoje que queira levar adiante uma causa nobre, que queira participar do
bom combate pela mensagem do Reino, qualquer pessoa que tenha recebido alguma
incumbência existencial que implique em mexer com mentalidades cristalizadas,
com corações adormecidos, para acordar consciências!
Mudanças significativas, desbravamento de novas ideias,
semeaduras de paradigmas transformadores não se fazem com pessoas mornas,
pacatas e sossegadas no seu canto. É preciso garra e paixão, ímpeto e
capacidade de sacrifício para empreendimentos assim. Isso não significa santidade
e perfeição, como Paulo não era santo, nem perfeito. Apenas a pessoa certa para
a tarefa em vista.
A personalidade de Paulo também me atrai pela sua
sinceridade absoluta, com seu ódio à hipocrisia, pela sua incapacidade de fazer
compromissos com princípios e ideias (o que para muitos pode parecer
agressividade e inflexibilidade).
É fácil entender por que Paulo tanto me encantou. Minha
tarefa existencial – que não é maior ou melhor do que outras tarefas – também
requer essa coragem, esse espírito desbravador e essa sinceridade de
princípios.
Às vezes, isso não agrada a muitos. Mas, espero estar
cumprindo com a fidelidade paulinamente teimosa a incumbência recebida. A
releitura de Paulo me realimentou, passados 40 anos, os mesmos sentimentos
apaixonados de agir pela mensagem do Reino, nesse mundo que ainda é um grande
Império Romano. E não posso deixar de mencionar que o meu grande inspirador na
infância e adolescência, J. Herculano Pires, assinou durante décadas uma coluna
no Diário de São Paulo, com o pseudônimo de Irmão Saulo. Coincidência de
inspirações?
Para finalizar, uma consideração a respeito das Epístolas de
Paulo, que hoje são consideradas pelos pesquisadores das escrituras como
efetivamente os documentos mais antigos que temos do cristianismo primitivo
(todos os evangelhos foram escritos depois das epístolas): apesar das heranças
judaicas, apesar de algumas ressonâncias da cultura da época, esses textos de
Paulo contém pérolas espirituais muito valiosas. Por exemplo, apesar da ideia
de pecado original, há frases profundamente otimistas em relação ao ser humano,
como “somos herdeiros de Deus e co-herdeiros do Cristo”. E apesar de muitas
vezes se acusar Paulo de ser um espírito duro e autoritário, ele escreveu umas
das mais belas páginas de todos os tempos sobre o amor:
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e
não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda
que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a
ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os
montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha
fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser
queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é paciente, é
benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se
ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se
irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. (Cor. I, 13)
Dora Incontri
terça-feira, 26 de agosto de 2014
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