E eis que no meio da estrada repentina luz se faz, mais luminosa que o sol, quase ofuscando o rapaz.
Tremendo de comoção, Saulo tomba do camelo.
No céu se rasga um caminho e desce alguém para vê-lo.
Voz suave, olhar profundo, rosto belíssimo, santo, pergunta esse Alguém a Saulo:
— Por que me persegues tanto?
Responde Saulo espantado:
— Mas quem sois vós, meu Senhor?
— Sou Jesus, a quem persegues, com tanta raiva e rancor!
Há exatos 40 anos, quando tinha apenas 11 anos de idade, li
pela primeira vez Paulo e Estêvão, romance de Emmanuel, psicografado por Chico
Xavier. Ou melhor, minha mãe leu em voz alta para mim, porque descobriu que eu
estava lendo escondido no banheiro. Ela achava que o livro era muito pesado
para minha idade e não queria que eu lesse. Mas acabou ela mesma fazendo a
leitura, não sei se censurando alguma coisa. Morávamos então em Berlim. E no
inverno sombrio daquela cidade, na época ainda com o muro, que tanto nos
deprimia, fiquei apaixonada pela figura de Paulo, pela história de sua vida.
Depois dessa primeira vez, li mais que 50 vezes esse livro.
E isso não é hipérbole. Parei de contar quando cheguei à 50ª leitura. E passei
a estudar vorazmente todas as versões da vida do apóstolo. A que está nos Atos,
suas Epístolas, li narrativas católicas, protestantes, ateias e a que mais me
encantou foi a escrita na primeira metade do século XX, por um judeu, Sholem
Ash, intitulada O Apóstolo. Nos últimos 15 anos, com o intenso envolvimento com
a Pedagogia Espírita e questões educacionais, não me dediquei mais a esse tema.
Agora estou lançando o livro de Saulo a Paulo, a história
recontada inteiramente em versos para crianças e que faz parte da série Grandes
Pessoas. Na verdade, muito antes de imaginar lançar essa série, quando ainda
nem tinha fundado a Editora Comenius e minha mãe ainda estava encarnada,
escrevi esse texto, constituído de 70 estrofes. Talvez uns 18 ou 19 anos atrás.
Por conta desse lançamento, reli de cabo a rabo Paulo e
Estêvão e decidi fazer esse balanço público da minha relação com Paulo de
Tarso. Essa releitura me fez muito bem, porque me levou às motivações profundas
que enraizaram os ideais dessa minha presente vida e aos sentimentos mais
viscerais que ainda nutrem a minha personalidade.
Primeiro, devo dizer, que o romance de Emmanuel resistiu ao
tempo, em sua estrutura literária, belissimamente escrito, em sua mensagem que
revitaliza o espírito e acende ideais. Apesar, é claro, de hoje minha visão a
respeito desse livro ser muito diversa de anos atrás. Dediquei-me ao estudo dos
primeiros 300 anos de Cristianismo, com autores como Bart Ehrman, Richard
Rubenstein ou Paul Johnson, afora todas as novidades de manuscritos descobertos
no século XX, que lançaram novas luzes sobre os Evangelhos. Com esse
conhecimento, fica claro que o romance de Emmanuel é um romance. Tem uma
validade histórica relativa. Por exemplo, sabemos hoje que os conflitos entre
Paulo e Tiago não foram tão amistosos como parecem ter sido nos relatos de
Emmanuel, com uma reconciliação final tão fraterna e cristã. Mais: Paulo
certamente conservou traços de autoritarismo de sua personalidade depois de sua
conversão. E não se tornou aquele modelo de humildade que Emmanuel retrata.
Outra coisa que me chamou atenção nessa leitura de agora: na narrativa de
Emmanuel, a leitura e a cópia de um manuscrito de Levi ocupam lugar central da
história. Todos os apóstolos liam, copiavam etc. Hoje se sabe que eram todos
analfabetos. Com exceção do próprio Paulo, que era doutor da Lei e talvez de
Mateus (ou Levi), que era cobrador de impostos. A escrita e a leitura não
ocupavam essa centralidade entre os primeiros cristãos, mas sim o ensino oral,
pois a maioria da população não sabia nem ler nem escrever.
Tudo isso apenas para dizer que os romances mediúnicos (os
bons romances que hoje nem existem mais) não têm a intenção de nos dar
informações históricas, porque cabe a nós, encarnados, pesquisar a História. A
intenção dos Espíritos é de nos edificar com uma mensagem estimulante, uma
inspiração positiva – como aliás, fez comigo.
Mas voltemos à figura de Paulo. Passado esse arrebatamento
juvenil pelo apóstolo, tive que me defrontar com as numerosas críticas que
existem em torno de sua doutrina e atuação. Muitos historiadores do
cristianismo, entre eles Charles Guignebert (que li por conselho de Herculano
Pires) ou Paul Johnson, consideram que Paulo é o verdadeiro fundador da Igreja,
tendo lançado a base dos dogmas que ainda empanam a pureza da mensagem de
Jesus. Exemplo disso é a ideia do pecado original, que não aparece nas palavras
de Cristo, sempre otimista em relação ao ser humano: “vós sois deuses”, “sede
perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”.
Outra acusação séria e verdadeira, feita a Paulo, é que se
encontram em suas epístolas, traços do machismo que promoveu a exclusão da
mulher como participante ativa nas práticas cristãs. E ainda há seu
conservadorismo político, manifesto por exemplo na Epístola aos Romanos, que
pode ter fundamentado a teoria do “direito divino” na Idade Média, ideia
segundo a qual temos de respeitar a autoridade constituída, porque ela foi
posta por Deus.
É verdade que Paulo, como ex-doutor da Lei judaica, como
filho de seu tempo, numa cultura greco-romana e judaica (as três extremamente
patriarcais), inserido num contexto pessoal de culpa (tinha matado Estêvão,
promovido vasta e sangrenta perseguição aos cristãos), impregnado dos conceitos
bíblicos do pecado, não poderia se furtar a carregar tudo isso para sua
interpretação da mensagem de Jesus! Não é possível julgarmos um homem de dois
mil anos atrás, com nossos conceitos de hoje. Ele compreendeu e traduziu Jesus,
como um ex-doutor da Lei daquele contexto histórico e com aquela história
pessoal poderia compreender!
Mas o que pode ainda nos inspirar Paulo, sua luta, sua
vida?…Muitas coisas. Tanto que ao reler sua história agora, aos 51 anos de
idade, consegui sentir em mim as mesmas emoções motivadoras, que me tocaram aos
11 anos de idade.
Embora carregando para a sua tarefa de difusão do
cristianismo nascente, as marcas de sua herança cultural, só Paulo podia fazer
o que fez: arrancar a mensagem de Jesus do exclusivismo judaico e espalhá-la
aos quatro cantos do Império Romano. Não foi à toa que Jesus o chamou para
isso. O que me fascina em Paulo, ainda hoje, é seu espírito desbravador e
universalista, fiel até o sacrifício e a morte a uma incumbência recebida. É
daquelas almas que quando possuídas de um ideal, quando encarregadas de uma
missão, não medem esforços, não se detém diante de nenhum obstáculo, percorrem
estradas, atravessam mares, se defrontam com inimigos e vão até o fim. Devoção
sem limites, ímpeto sem descanso, coragem sem esmorecimento.
Exatamente dessas virtudes precisava o homem que fosse
desentranhar a mensagem de Jesus do seu horizonte apenas judaico, para lançá-la
ao mundo e semeá-la na história e fazer com que ainda hoje a tivéssemos em
mãos. E isso, apesar de suas licenças históricas, o romance de Emmanuel retrata
muito bem.
E exatamente dessas virtudes que precisa qualquer pessoa
ainda hoje que queira levar adiante uma causa nobre, que queira participar do
bom combate pela mensagem do Reino, qualquer pessoa que tenha recebido alguma
incumbência existencial que implique em mexer com mentalidades cristalizadas,
com corações adormecidos, para acordar consciências!
Mudanças significativas, desbravamento de novas ideias,
semeaduras de paradigmas transformadores não se fazem com pessoas mornas,
pacatas e sossegadas no seu canto. É preciso garra e paixão, ímpeto e
capacidade de sacrifício para empreendimentos assim. Isso não significa santidade
e perfeição, como Paulo não era santo, nem perfeito. Apenas a pessoa certa para
a tarefa em vista.
A personalidade de Paulo também me atrai pela sua
sinceridade absoluta, com seu ódio à hipocrisia, pela sua incapacidade de fazer
compromissos com princípios e ideias (o que para muitos pode parecer
agressividade e inflexibilidade).
É fácil entender por que Paulo tanto me encantou. Minha
tarefa existencial – que não é maior ou melhor do que outras tarefas – também
requer essa coragem, esse espírito desbravador e essa sinceridade de
princípios.
Às vezes, isso não agrada a muitos. Mas, espero estar
cumprindo com a fidelidade paulinamente teimosa a incumbência recebida. A
releitura de Paulo me realimentou, passados 40 anos, os mesmos sentimentos
apaixonados de agir pela mensagem do Reino, nesse mundo que ainda é um grande
Império Romano. E não posso deixar de mencionar que o meu grande inspirador na
infância e adolescência, J. Herculano Pires, assinou durante décadas uma coluna
no Diário de São Paulo, com o pseudônimo de Irmão Saulo. Coincidência de
inspirações?
Para finalizar, uma consideração a respeito das Epístolas de
Paulo, que hoje são consideradas pelos pesquisadores das escrituras como
efetivamente os documentos mais antigos que temos do cristianismo primitivo
(todos os evangelhos foram escritos depois das epístolas): apesar das heranças
judaicas, apesar de algumas ressonâncias da cultura da época, esses textos de
Paulo contém pérolas espirituais muito valiosas. Por exemplo, apesar da ideia
de pecado original, há frases profundamente otimistas em relação ao ser humano,
como “somos herdeiros de Deus e co-herdeiros do Cristo”. E apesar de muitas
vezes se acusar Paulo de ser um espírito duro e autoritário, ele escreveu umas
das mais belas páginas de todos os tempos sobre o amor:
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e
não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda
que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a
ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os
montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha
fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser
queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é paciente, é
benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se
ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se
irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. (Cor. I, 13)
Dora Incontri
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