Não posso deixar passar essa Páscoa, sem uma reflexão sobre
seu personagem principal, para quem se considera cristão. E nesse momento de
grande tumulto no Brasil e no mundo, com tanta violência e tão denso nevoeiro,
estou pensando nos cristãos…
Esses cristãos que compõem a maioria da população
brasileira, pelo menos no censo, divididos majoritariamente entre católicos,
evangélicos e espíritas.
Esses cristãos que, em sua maioria, não fazem conta dos
ensinos de Jesus. Que talvez achem que são palavras poéticas, bonitas, mas
preceitos inaplicáveis na vida prática. Ou ainda que são ensinos que só possam
ser pensados em relações pessoais, mas nada podem acrescentar às relações
sociais, à organização política, à produção econômica… Teorias bonitas, mas
utópicas, que não são para esse mundo… E no entanto, há dois mil anos que essas
belas palavras estão buscando nosso coração e nossa mente e estão sendo
semeadas, muito além das relações de indivíduo a indivíduo, sendo justamente o
fermento de avanços em todas as áreas, no Direito, na Educação, na Política, na
Sociedade, na Economia.
Só para citar três exemplos: um ateu, como André
Comte-Sponville, ou um judeu, como Erich Fromm, ou um historiador da Educação,
como Franco Cambi, reconhecem que a mensagem de Jesus – essa de fraternidade
universal, de igualdade, de valorização dos excluídos – permeia toda a história
da civilização ocidental, sendo a base de muitas de nossas conquistas sociais,
inspiração de muitos direitos concretizados, vertente do humanismo mais
universal que habita mesmo doutrinas, movimentos sociais e leis, que se
consideram laicos, mas carregam dentro de si, as sementes cristãs.
E, no entanto, ainda muitos cristãos não conseguem se deixar
permear por essa onda refrescante de amor, liberdade, compaixão, humanismo… que
sopra das palavras e dos exemplos de Jesus. Muitos cristãos que agem com o
outro, que se portam socialmente, que trabalham em seus empregos e
empreendimentos, que têm uma visão da lei e da justiça, da sociedade e do mundo,
em completa oposição ao que ensinou, ao que demonstrou Jesus.
Senão vejamos!
Como pode um cristão ser racista, se a compreensão que lhe
felicita é a da fraternidade universal? Se Jesus mostrou que seus discípulos
viriam do Ocidente e do Oriente e que todos seriam bem-vindos ao banquete do
Reino?
Como pode um cristão discriminar alguém por sua conduta
sexual, se Jesus acolheu aqueles que eram considerados “pecadores” e fez
questão de, depois de morto, aparecer em primeiro lugar para Madalena, uma
prostituta, que os judeus da época julgavam que deveria ser apedrejada?
Como pode um cristão proferir uma frase do tipo: “bandido
bom é bandido morto”, se Jesus disse “misericórdia quero e não sacrifício” e
ele mesmo morreu entre dois ladrões, acolhendo-os em seu amor?
Como pode um cristão acreditar, pregar e praticar qualquer
tipo de violência, armada, física, psicológica, verbal e ainda achar que a
violência se justifica, quando Jesus disse que deveríamos “perdoar setenta
vezes sete”, que os “mansos herdariam a terra”, e que deveríamos amar os
próprios inimigos? E se ele próprio não usou de violência, mas perdoou toda a
violência recebida; se deu a outra face e morreu, pedindo que Deus perdoasse
seus algozes?
Como pode um cristão lutar pelo poder, trapacear,
corromper-se, aviltar-se, para se sobrepor ao próximo, espezinhando quem a ele
se interponha, se Jesus disse que “veio para servir e não para ser servido” e
que “quem quisesse ser o maior, que fosse o servo de todos”? Se ele, que muitos
cristãos consideram como o próprio Deus, e nós, espíritas, consideramos como um
Espírito perfeito, veio ao mundo, como filho de um carpinteiro, viveu sem
poderes e morreu perseguido pelos poderosos?
Como pode um cristão se esfalfar, se atirar a uma luta
insana, explorando outros seres humanos, seus irmãos, se corromper, vender seus
valores, trair sua pátria, pisar em todos os princípios morais, para acumular
dinheiro, para possuir o excesso, quando a muitos falta o necessário, se Jesus
disse ao jovem rico que o procurou para segui-lo, que desse todos os seus bens
aos pobres, acrescentando em seguida, que seria mais fácil um camelo passar
pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus? E se ele
próprio, nascido na pobreza, dizia não ter uma pedra onde encostar a cabeça?
Como pode um cristão desprezar uma criança, fechar o ouvido
à sua voz, desvalorizando a infância, negligenciando-a e tantas vezes abusando
e usando de vara e violência (como querem os que seguem mais o Velho Testamento
do que Jesus), se o Mestre disse “vinde a mim as criancinhas, porque é delas o
Reino dos Céus”?
Como pode um cristão ser machista, desrespeitando a
igualdade de direitos das mulheres, explorando-as, olhando-as como objeto,
usando de violência física ou psicológica contra elas, se Jesus, num tempo em
que um rabino (como até hoje entre os rabinos ortodoxos) nem sequer podia
encostar numa mulher, deixou que Madalena lhe tocasse, honrou-lhe com a
primeira aparição em Espírito, acolhia em seu círculo mulheres, consideradas de
má vida, ou mulheres de família, incluindo-as em seus ensinos (como fez com
Marta e Maria, as irmãs de Lázaro ou com a samaritana do poço de Jacó, aliás
multiplamente discriminada, por ser mulher, por ser samaritana e por ter tido
vários maridos…)?
Enfim… como pode um cristão ser tão contrário a todos os
ensinos de Jesus?
E como podem nações inteiras, formadas sob a égide do
cristianismo, explorarem outros povos, promoverem a guerra, atacarem os mais
fracos, dominarem outras nações, exercerem a tortura e matança, ignorando a
fome, a injustiça e a marginalidade em que vivem inúmeros povos em todos os
Continentes?
Como podem nações que têm suas leis inspiradas na igualdade
e fraternidade, que beberam nas fontes do cristianismo, que assinaram a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que nada mais é do que uma carta
laica com uma forte herança cristã, infringirem diariamente suas próprias leis
e pisotearem a cada instante essa Declaração?
E agora, como pode um povo como o brasileiro, cujas
pesquisas revelam que 99% acredita na existência de Deus, de repente estar
possuído dessa fúria selvagem, digladiando-se mutuamente, cuspindo ódio e
contaminando até mesmo as crianças?
Não posso me eximir de pensar tudo isso nessa Páscoa!
Parece que a voz do Mestre nos conclama de novo à
mansuetude, à compaixão (mesmo com aqueles que consideramos que erraram), ao
“não julgueis para não serdes julgados”, ao perdão incondicional e ao amor,
acima de tudo!
Parece que a fera que dorme em nós ainda pode ser despertada
por uma propaganda maciça, por uma hipnose coletiva, por uma histeria popular –
como foi feito na Alemanha nazista ou na Itália fascista, apenas para citar
duas situações históricas muito emblemáticas desse processo em que se acorda o
monstro, escondido no inconsciente coletivo.
Isso significa o quê? Que ainda não transcendemos as sombras
que habitam em nós, que nossa adesão aos valores cristãos é superficial, é
fraca, ainda não conseguiu transformar totalmente a fera em ser humano.
Paremos um instante, respiremos fundo e analisemos a
situação. Estamos mergulhados num comportamento de massa, irracional e muitos
destilam ódio. Paremos antes que seja tarde e lembremos de Jesus! Pode parecer
piegas falar assim: mas não é Jesus, que católicos, evangélicos e espíritas
dizem seguir? E que mesmo ateus admiram?
Então, não há solução, nem política, nem social, nem
econômica, sem os valores essenciais que Jesus ensinou e exemplificou e esses
valores são justiça, igualdade, desapego, desprendimento, humildade, compaixão…
enfim, o que todos sabemos já há muitos séculos, de cor e salteado, mas que a
maioria ainda não teve coragem de colocar em prática.
Dora Incontri